www.librevista.com
nº 64, julio 2025
edición bilingue en portugués y castellano
x Maria Claudia Coelho[1]
Que monstro é, na verdade, um grand seigneur sem qualquer civilidade.
Antoine de Courtin
Em fevereiro de 2025, as televisões exibiram uma cena que captou a atenção mundial. Em uma reunião realizada no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, o presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, e seu vice, J. D. Vance, receberam Volodymir Zelensky, presidente da Ucrânia, para anunciar os termos de um acordo entre os dois países para a continuidade do apoio norte-americano à Ucrânia, condicionado à concessão de uma participação na extração de terras raras em território ucraniano. Não se tratava, evidentemente, de uma discussão substantiva, mas de um encenamento midiático do sucesso da diplomacia norte-americana e de sua capacidade/autoridade mediadora de conflitos internacionais.
Aquilo que se pretendia mostrar ao mundo, contudo, fez água. O que se viu foi um bate-boca que chocou a opinião mundial, ao fim do qual o presidente ucraniano deixou a Casa Branca sem assinar qualquer acordo. E, nas redes sociais, proliferaram comentários críticos aos norte-americanos e elogiosos ao ucraniano. Em meio a essas postagens, muitos norte-americanos repudiaram a atitude de seu governo.
Essa cena, em sua cobertura midiática e em sua repercussão nas redes sociais, foi atravessada por diversos sentimentos: gratidão, humilhação, vergonha.
O que essa constelação de afetos nos revela sobre as relações entre democracia e emoções?
O trabalho das emoções na vida pública
Já faz tempo que estudiosos de diversas áreas reconhecem a centralidade das emoções em fenômenos políticos. O ressentimento é uma figurinha fácil nesses estudos, sendo acionado, no exemplo mais clássico, para explicar o ambiente emocional na Alemanha pós Primeira Guerra Mundial, que teria pavimentado o caminho para a eclosão do nazismo e tudo o que se seguiu. Hoje, é uma chave explicativacomum entre aqueles que analisam a adesão de tantos eleitores a ideários de extrema-direita, seja nos Estados Unidos, em Israel ou no Brasil.
O ressentimento se situa no ponto de articulação entre tempo e política, mostrando o papel das visões do passado na política contemporânea. Nesse registro, a nostalgia é outro tema recorrente, em particular junto àqueles que se dedicam a pensar a experiência dos cidadãos dos antigos países comunistas com a queda desses regimes. O futuro, imaginado, desejado, prometido, também é central nas retóricas de campanhas, apertando as teclas do medo ou da esperança, como visto na campanha que, em 2002, elegeu pela primeira vez Luiz Inácio Lula da Silva para presidente do Brasil.
Em outra chave, o nojo, em sua dimensão moral, expressa a exclusão e a rejeição de um grupo social por outro, demarcando fronteiras sociais. A compaixão atua também nesse sentido, desenhando não só fronteiras como hierarquias, entre aquele que dá e aquele que recebe a compaixão. O desprezo é seu par, capaz de revelar relações hierárquicas, dirigindo-se, nos trajes tradicionais da aristocracia, dos extratos superiores aos inferiores e, em roupagens democráticas, no sentido contrário. Na irônica e arguta formulação de William Ian Miller, a possibilidade dos desprezos mútuos seria uma contribuição da democracia.
Afetos são onipresentes na política, transitando do nível micro –escolhas eleitorais, passeatas, comícios– ao nível macro ─projetos, campanhas, debates. Perpassam os lugares da política nas mídias, em suas versões tradicionais, como jornais ou emissoras televisivas, ou nas já nem tão novas assim redes sociais e seus efeitos, como bolhas ou fake news.
É esse conjunto de ideias que aciono aqui para discutir a cena protagonizada por Trump, Vance e Zelensky e suas repercussões.
O sabor da gratidão: a servidão
Vance –Você agradeceu em algum momento durante essa reunião?
Zelensky tenta falar e é interrompido por Trump. Pede para falar e:
Trump –Não, não. Você já falou muito (…) Você não está vencendo essa guerra. Você tem uma ótima chance de se sair bem graças a nós.
Zelensky diz que estão sozinhos
Trump –Vocês não estão sozinhos. Nós demos a vocês, por meio desse presidente estúpido, trezentos e cinquenta bilhões de dólares, demos equipamentos militares e vocês (…) Se vocês não tivessem nossos equipamentos militares, essa guerra teria acabado em duas semanas.
Trump –Você precisa ser grato. Você não tem as cartas na mão.
Zelensky –Eu sou grato.
Por que tanta ênfase na necessidade de Zelensky se mostrar grato em público? Qual o trabalho da gratidão em uma cena pública?
A gratidão é um sentimento que se instaura na impossibilidade de retribuir um presente –é por isso que Georg Simmel se refere a ela como tendo um “gosto de servidão”. As reflexões de Simmel se somam às de Marcel Mauss sobre a dádiva. Recapitulemos: para Mauss, a dádiva envolve uma tríplice obrigação: dar, receber, retribuir. Dar é um convite à parceria: quando ofertamos algo a alguém, estamos no fundo convidando-o a entrar em relação conosco. A oferta traz embutida a obrigação de ser aceita: recusar um presente equivale a uma declaração de hostilidade. Aceitar, contudo, não encerra a interação, pois aceitar o presente implica aceitar junto a obrigação de retribuir. E essa retribuição inaugura um novo ciclo, em princípio eterno, de dádivas e contra dádivas.
O que acontece quando não podemos retribuir? Ao aceitarmos um “presente” –e aqui sejamos elásticos quanto àquilo que pode ser definido assim– que não podemos retribuir na mesma moeda –e no caso em discussão a metáfora se torna literal–, só nos resta ofertar em troca o nosso reconhecimento de que algo nos foi dado. Esse reconhecimento afeta a relação entre quem dá e quem recebe, estabelecendo uma hierarquia, com aquele que dá assumindo uma posição de superioridade. O presente não retribuído gera uma dívida: o doador se torna credor. A retribuição na mesma moeda quita a dívida, atesta a igualdade entre os parceiros da troca. E é por isso que exigir gratidão de Zelensky é tão importante nessa cena: ela atestaria publicamente a autoridade de Trump e o reconhecimento da superioridade dos Estados Unidos.
Entretanto, gratidão exigida não é a mesma coisa que gratidão espontânea. A gratidão espontânea aceita o lugar, talvez temporário, de inferioridade, e esse reconhecimento desempenha aí o papel de uma contra dádiva, produzindo naquele que deu a gratificação de saber-se superior. Quando, contudo, aquele que dá cobra a gratidão, algo diferente se processa: aquele que recebeu perde a chance de retribuir com os parcos recursos de que dispõe. Isso gera uma dupla inferioridade, pois lhe tira a chance de retribuir com aquilo que lhe restou: o reconhecimento espontâneo da assimetria hierárquica.
Será que os trezentos e cinquenta bilhões de dólares e os armamentos militares foram realmente uma dádiva? Analistas apontam que o Memorando de Budapeste, assinado em 1994, estabelecia que a Ucrânia abriria mão de seu arsenal nuclear, devolvendo-o a Moscou, e se comprometia a aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP); em troca, os governos dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Rússia se comprometiam a respeitar as fronteiras e a soberania da Ucrânia e a abster-se do uso da força contra ela.
O apoio militar à Ucrânia por parte dos Estados Unidos foi assim, originalmente, o atendimento às cláusulas do TNP. Na cena da Casa Branca, esse apoio é reinterpretado, e o que era originalmente retribuição –apoio militar em troca de renúncia às armas nucleares– é agora apresentado como uma dádiva espontânea dos Estados Unidos que não teria sido retribuída. Na nova foto, a Ucrânia é uma aproveitadora ingrata, que recebeu bilhões de dólares sem nada dar em troca. É agora cobrada a retribuir a ajuda militar, descrita como uma dádiva espontânea que recebeu, com a concessão de direitos de exploração de suas terras raras.
A cobrança da gratidão é uma nova camada de subjugação.
Lembremos que o episódio é encenado: trata-se de uma exposição pública de autoridade. Então: qual é o valor dessa gratidão que é cobrada? E o que essa cobrança diz de quem a faz?
Cortesia, civilização, humilhação
Brian Glenn, jornalista, tenta dar sequência ao ritual de humilhação. Pergunta a Zelensky porque não está trajando um terno e afirma que isso é desrespeitoso para com o governo e o povo americanos. Arremata: “você tem um terno?”
Zelensky responde que voltará a usar terno quando a guerra acabar, e que talvez seja um terno melhor do que o que o jornalista traja, ou não, talvez seja mais barato.
O presidente ucraniano foi convidado a ir à Casa Branca para assinar um acordo. A conversa televisionada era tão somente o anúncio público. Tratava-se de um acordo que envolvia, de um lado, a continuidade de ajuda militar e a intermediação de um pacto entre Rússia e Ucrânia para que a guerra tivesse fim; de outro, a concessão aos norte-americanos de direitos de exploração das terras raras ucranianas. Ali, em público, sozinho, é surpreendido por acusações de ingratidão, é interrompido em suas falas, é acusado de estar brincando com a possibilidade de uma terceira guerra mundial, é criticado por suas roupas. Essa saraivada se dá quando está não somente em minoria absoluta, mas na casa de seus interlocutores.
Os estudos sobre sistemas da honra apontam a centralidade da hospitalidade nos códigos de conduta e os intrincados arranjos que definem as atitudes corretas e desejáveis para anfitriões e convidados. Talvez o exemplo mais bem acabado da predominância absoluta, em meio a essas regras, do dever do anfitrião em acolher e proteger seu convidado nos seja contado por Ismail Kadaré no romance Abril Despedaçado.
No romance, um rapaz é morto em sua aldeia por um forasteiro. Os irmãos do rapaz, ao saberem da notícia, saem no encalce do assassino, cuja única chance de escapar é se colocar sob a proteção de alguém como seu hóspede. Bate então à porta da primeira casa que encontra e pede hospitalidade. Como num espelho invertido da lógica da dádiva, a hospitalidade pedida não pode ser negada, e o senhor que lhe abre a porta o acolhe e oferece pernoite e refeição. Enquanto comem, a porta se abre subitamente e entram os irmãos do morto. Vendo o assassino, sacam suas armas, mas são detidos por um gesto do senhor, que levanta a mão e diz: “ele é nosso hóspede”. Sentam-se todos juntos, terminam a refeição, o assassino feito hóspede vai dormir e, na manhã seguinte, seus anfitriões o escoltam até os limites da aldeia para protegê-lo daqueles que estão em seu encalço...
Zelensky é um hóspede convidado para ser humilhado em público por anfitriões mais poderosos do que ele. Os códigos da honra nos falam sempre da obrigação fundamental dos superiores em não constranger, não humilhar quem lhe é inferior. Falhar na observação dessa regra basilar tem como efeito último não o rebaixamento do humilhado, mas sim a revelação da pequenez de quem humilha.
Quando um inferior quebra uma regra de etiqueta e oferece a mão a seu superior, essa mão que não deveria ter sido estendida se torna uma mão que não pode ser recusada. Reside aí a grandeza prescrita por tantos códigos de polidez e civilidade.
Zelensky foi realmente humilhado? Perante quem?
A vergonha de ser poderoso
A cena repercutiu pelo mundo todo, gerando muitas manifestações de apoio da parte dos líderes europeus. Emmanuel Macron pediu respeito pelos ucranianos; Donald Tusk, da Polônia, reiterou que os ucranianos “não estão sozinhos”; Luís Montenegro e Pedro Sánchez reiteraram o apoio de Portugal e Espanha; e Ursula von der Leyen, presidente da União Europeia, declarou sua solidariedade.
Em um post publicado em 03 de março de 2025 na conta do New York Times do Instagram, intitulado “U.S. suspends all military aid to Ukraine, Trump official says”, há cinco mil setecentos e oito comentários (em 01/06/2025). Há elogios a Trump, postagens em tom distanciado oferecendo leituras alternativas da cena, alertas críticos quanto a uma suposta aliança entre Trump e Putin e manifestações condenando a atitude de Trump e J.D. Vance em relação ao presidente ucraniano.
Alguns exemplos dessas condenações: “desprezível”, “a maioria dos americanos está com Zelensky!”, “isso foi embaraçoso de assistir para todos nós”, “dá nojo o modo como Zelensky foi tratado com tanto desrespeito na Casa Branca e o repórter que perguntou sobre o terno devia ser humilhado em praça pública por isso!”, “estou com tanta vergonha dos Estados Unidos”, “enojante e vergonhoso, estou tão constrangido por ser norte-americano nesse momento”, “muitas, muitas desculpas, Ucrânia”, “desculpe, Ucrânia”, “vergonha histórica para os Estados Unidos”, “uuuu, uuuu, Trump, que vergonha!”, “Que vergonha, Trump e seus apoiadores (...) a maioria de nós não apoia vocês”, “isso é tão embaraçoso”, “que circo no Salão Oval...que vergonha”.
Se uma leitura possível da cena é a humilhação de Zelensky, esses comentários nos sugerem um outro entendimento. A tônica da condenação é a vergonha, com formulações fortes como “ter vergonha de ser norte-americano” ou “vergonha histórica para os Estados Unidos”. Zelensky era, obviamente, a parte frágil da cena: convidado como chefe de Estado, não foi tratado como um igual, mas como um inferior ingrato a quem se negou o direito de falar. Ora, não dizem os teóricos da polidez e da civilidade que a grandeza está em não humilhar quem pode menos? Que as disputas de grandeza devem se dar entre iguais?
Convidar o mais fraco para submetê-lo a um ritual de humilhação diminui quem assim procede: é isso o que parecem afirmar as reações de chefes de estado e, mais veementemente, dos cidadãos norte-americanos. Dizia o historiador italiano Carlo Ginzburg que a capacidade de se envergonhar de seu país é um atestado de pertencimento nacional. A cena (o “circo”) protagonizado por Trump, longe de suscitar admiração nos cidadãos norte-americanos, envergonhou a muitos exatamente por conta de seus vínculos emocionais com o país.
A (in)civilidade na política
Resta a pergunta: por que encenar esse ritual de humilhação perante as câmeras?
O cientista político Bernard Harcourt, em artigo sobre as relações entre civilidade e política, recupera a seguinte passagem da obra de Antoine de Courtin: “Pessoas de status superior ‘devem no mínimo, em seu próprio benefício, ser boas com seus empregados domésticos, e civilizadas e honestas com aquelas que não são suas dependentes’, recomendava de Courtin”. Baseando seu argumento em obras clássicas sobre civilidade, Harcourt comenta sobre o entrelaçamento entre civilidade e poder, afirmando que a incivilidade na política é muitas vezes o recurso que resta, àqueles excluídos do mainstream, para se fazer ouvir. Por isso, acusá-los de incivilidade seria uma prerrogativa de quem tem poder para se fazer ouvir e pode, por isso, prescindir do discurso incivilizado. Logo, a acusação supõe um lugar de privilégio: posso condenar a incivilidade porque não preciso dela para me fazer ouvir, e com isso consolido minha posição de poder.
A trajetória de Trump é calcada em um discurso incivilizado, repleto de expressões pejorativas dirigidas a seus opositores: “crooked (Joe) Biden”, “laffin Kamala (Harris)”, “crazy Nancy (Pelosi)”, para ficarmos somente com alguns exemplos mais brandos. Essa retórica agrada a uma parte expressiva do eleitorado norte-americano – ou não teria sido eleito duas vezes.
De acordo com as teses de Harcourt, poderíamos admitir que há alguma lógica em recorrer a esse tipo de discurso para abrir caminho inicialmente no establishment político. Essa lógica, contudo, é reservada a quem não tem poder para se fazer ouvir.
Quando se ocupa a posição mais poderosa do mundo, essa estratégia já não faz sentido. Pois a civilidade, como diz Harcourt, é uma escolha à disposição de quem goza de poder e prestígio. E escolher a civilidade implica, em seu âmago, optar pelo respeito para com quem é ou pode menos. De Courtin: “Que monstro é, na verdade, um grand seigneur sem qualquer civilidade’”.
Será essa a fonte da vergonha de tantos norte-americanos ao verem o Salão Oval usado como cenário para humilhar o presidente de um país frágil e destroçado que vem, a convite, fazer um acordo em busca de apoio? ║
Palavras de referência:
Maria Claudia Coelho
Emocoes
Emociones
Politica
[1] Maria Claudia Coelho é doutora em Sociologia, mestre em Antropologia Social e formada em História. É professora titular de Antropologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, onde leciona desde 1993. Seu ensaio A Espiral do Mundo: Um Breve Comentário sobre as Expectativas para o Século XXI (https://www.librevista.com/la-espiral-del-mundo-x-maria-claudia-coelho-premio-librevista-de-ensayo-2021.html) foi vencedor do Prêmio Librevista de Ensaio de 2021. A Librevista também publicou seu Emoções no Teatro da Política (https://www.librevista.com/las-emociones-en-el-teatro-de-la-politica-x-maria-claudia-coelho-bilingue.html ).
Sigue la traducción al castellano:
x Maria Claudia Coelho[2]
¡Qué monstruo es, en verdad, un gran señor sin ninguna civilidad!
Antoine de Courtin
En febrero de 2025, los televisores mostraron una escena que captó la atención mundial. En una reunión celebrada en la Sala Oval de la Casa Blanca en Washington, el presidente de los Estados Unidos de América, Donald Trump, y su vicepresidente, J. D. Vance, recibieron a Volodymyr Zelensky, presidente de Ucrania, para anunciar los términos de un acuerdo entre ambos países para la continuación del apoyo estadounidense a Ucrania, condicionado a la concesión de una participación en la extracción de tierras raras en territorio ucraniano. Claramente no se trató de una discusión sustantiva, sino de una puesta en escena mediática del éxito de la diplomacia norteamericana y de su capacidad/autoridad para mediar en conflictos internacionales.
Sin embargo, lo que se pretendía mostrar al mundo hizo agua. Lo que vimos fue una acalorada discusión que conmocionó a la opinión mundial, al final de la cual el presidente ucraniano abandonó la Casa Blanca sin firmar ningún acuerdo. Y en las redes sociales proliferaron los comentarios críticos con los estadounidenses y elogiosos con los ucranianos. En medio de estas publicaciones, muchos estadounidenses condenaron las acciones de su gobierno.
Esta escena, en su cobertura mediática y en su repercusión en las redes sociales, estuvo permeada por una variedad de sentimientos: gratitud, humillación, vergüenza.
¿Qué nos revela esta constelación de afectos sobre la relación entre democracia y emociones?
El trabajo de las emociones en la vida pública
Los académicos de diversas areas han reconocido desde hace mucho tiempo la centralidad de las emociones en los fenómenos políticos. El resentimiento es una característica común en estos estudios y se utiliza, en el ejemplo más clásico, para explicar el clima emocional en Alemania después de la Primera Guerra Mundial, que allanó el camino para el estallido del nazismo y todo lo que siguió. Hoy en día, es una clave explicativa común entre quienes analizan la adhesión de tantos electores a ideologías de extrema derecha, ya sea en Estados Unidos, Israel o Brasil.
El resentimiento se encuentra en el punto de articulación entre el tiempo y la política, demostrando el papel de las visiones del pasado en la política contemporánea. En este contexto, la nostalgia es otro tema recurrente, particularmente entre quienes se dedican a reflexionar sobre la experiencia de los ciudadanos de los antiguos países comunistas tras la caída de esos regímenes. El futuro imaginado, deseado, prometido, también es central en la retórica de campaña, presionando las teclas del miedo o la esperanza, como se vio en la campaña que, en 2002, eligió a Luiz Inácio Lula da Silva como presidente de Brasil por primera vez.
En otra clave, el asco, en su dimensión moral, expresa la exclusión y el rechazo de un grupo social por otro, demarcando fronteras sociales. La compasión también actúa en este sentido, trazando no sólo límites sino también jerarquías entre quienes dan y quienes reciben compasión. El desprecio es su par, capaz de revelar relaciones jerárquicas, dirigiéndose, bajo el ropaje tradicional de la aristocracia, de las clases altas a las bajas, y, bajo el ropaje democrático, en dirección opuesta. En la irónica y astuta formulación de William Ian Miller, la posibilidad del desprecio mutuo sería una contribución de la democracia.
Los afectos son omnipresentes en la política, y se extienden desde el nivel micro –elecciones electorales, marchas, manifestaciones– al nivel macro –proyectos, campañas, debates. Permean los lugares de la política en los medios de comunicación, en sus versiones tradicionales, como los periódicos o las cadenas de televisión, o en las no tan nuevas redes sociales y sus efectos, como las burbujas o las fake news.
Es este conjunto de ideas el que utilizo aquí para analizar la escena protagonizada por Trump, Vance y Zelensky y sus repercusiones.
El sabor de la gratitud: la servidumbre
Vance ─¿Dijiste gracias en algún momento durante esa reunión?
Zelensky intenta hablar y es interrumpido por Trump. Pide para hablar y:
Trump –No, no. Ya hablaste mucho (…) No estás ganando esta guerra. Tienes una gran oportunidad de salir bien gracias a nosotros.
Zelensky dice que están solos.
Trump –No estás solo. Les dimos, a través de ese estúpido presidente, trescientos cincuenta mil millones de dólares, les dimos equipo militar y Ustedes (…) Si no hubieran tenido nuestro equipo militar, esta guerra habría terminado en dos semanas.
Trump –Tienes que estar agradecido. No tienes todas las cartas en la mano.
Zelensky ─Estoy agradecido.
¿Por qué tanto énfasis en la necesidad de que Zelensky muestre gratitud en público? ¿Cuál es el papel de la gratitud en una escena pública?
La gratitud es un sentimiento que surge cuando es imposible retribuir un regalo, ─por eso Georg Simmel lo define como “tener un sabor a servidumbre”. Las reflexiones de Simmel se suman a las de Marcel Mauss sobre la dádiva. Recapitulemos: para Mauss, la dádiva implica una triple obligación: dar, recibir, corresponder. Dar es una invitación a la asociación: cuando ofrecemos algo a alguien, esencialmente lo estamos invitando a entablar una relación con nosotros. La oferta conlleva la obligación de aceptarla: rechazar un regalo equivale a una declaración de hostilidad. Sin embargo, aceptar no termina la interacción, ya que aceptar el regalo implica aceptar la obligación de corresponder. Y esta retribución inaugura un nuevo ciclo, en principio eterno, de dádivas y contra dádivas.
¿Qué pasa cuando no podemos retribuir? Cuando aceptamos un “regalo” –y aquí seamos flexibles en cuanto a lo que puede definirse como tal– que no podemos devolver en especie –y en el caso que nos ocupa la metáfora se vuelve literal–, todo lo que podemos hacer es ofrecer a cambio nuestro reconocimiento de que se nos ha dado algo. Este reconocimiento afecta la relación entre el que da y el que recibe, estableciendo una jerarquía, asumiendo el que da una posición de superioridad. Un regalo no correspondido crea una deuda: el que da se convierte en acreedor. La retribución en la misma moneda salda la deuda y atestigua la igualdad entre los socios en el intercambio. Y es por eso que exigir gratitud a Zelensky es tan importante en esta escena: atestiguaría públicamente la autoridad de Trump y reconocería la superioridad de Estados Unidos.
Sin embargo, la gratitud requerida no es lo mismo que la gratitud espontánea. La gratitud espontánea acepta el lugar quizás temporal de inferioridad, y este reconocimiento juega el papel de un contra regalo, produciendo en el que da la gratificación de saberse superior. Sin embargo, cuando el que da exige gratitud, sucede algo diferente: el receptor pierde la oportunidad de corresponder con los recursos limitados que tiene. Esto crea una doble inferioridad, ya que elimina la posibilidad de devolver lo que queda: el reconocimiento espontáneo de la asimetría jerárquica.
¿Fueron los trescientos cincuenta mil millones de dólares y los armamentos militares realmente un regalo? Los analistas señalan que el Memorando de Budapest, firmado en 1994, estableció que Ucrania renunciaría a su arsenal nuclear, devolviéndolo a Moscú, y se comprometió a adherirse al Tratado de No Proliferación de las Armas Nucleares (TNP); A cambio, los gobiernos de Estados Unidos, el Reino Unido y Rusia se comprometieron a respetar las fronteras y la soberanía de Ucrania y a abstenerse de utilizar la fuerza contra ella.
Así pues, el apoyo militar de Estados Unidos a Ucrania supuso en un principio una conformidad con las cláusulas del TNP. En la escena de la Casa Blanca, este apoyo se reinterpreta y lo que originalmente era una retribución (apoyo militar a cambio de renunciar a las armas nucleares) ahora se presenta como un regalo espontáneo de Estados Unidos que no habría sido correspondido. En la nueva imagen, Ucrania es un beneficiario desagradecido que ha recibido miles de millones de dólares sin dar nada a cambio. Ahora se le pide que devuelva la ayuda militar, descrita como un regalo espontáneo que recibió, otorgándole los derechos para explotar sus tierras raras.
La exigencia de gratitud es una nueva capa de una subyugación.
Recordemos que el episodio es una puesta en escena: se trata de una exhibición pública de autoridad. Entonces: ¿cuál es el valor de esta gratitud que se cobra? ¿Y qué dice esta cobranza sobre la persona que la realiza?
Cortesía, civilización, humillación
Brian Glenn, periodista, intenta continuar el ritual de humillación. Le pregunta a Zelensky por qué no lleva traje y afirma que eso es una falta de respeto al gobierno y al pueblo de Estados Unidos. Arremete: “¿Tienes traje?”
Zelensky responde que volverá a usar traje cuando termine la guerra, y que quizás será un traje mejor que el que lleva el periodista, o quizás será más barato.
El presidente ucraniano fue invitado a la Casa Blanca para firmar un acuerdo. La conversación televisada fue simplemente el anuncio público. Se trataba de un acuerdo que implicaba, por un lado, la continuación de la ayuda militar y la intermediación de un pacto entre Rusia y Ucrania para poner fin a la guerra; Por otro lado, la concesión de derechos de exploración de tierras raras ucranianas a los estadounidenses. Allí, en público, solo, lo sorprenden con acusaciones de ingratitud, lo interrumpen en sus discursos, lo acusan de jugar con la posibilidad de una tercera guerra mundial, lo critican por su vestimenta. Esta granizada se produce no sólo cuando se encuentra en una minoría absoluta, y en la casa de sus interlocutores.
Los estudios sobre los sistemas de honor señalan la centralidad de la hospitalidad en los códigos de conducta y los intrincados acuerdos que definen las actitudes correctas y deseables para anfitriones e invitados. Tal vez el mejor ejemplo del predominio absoluto, entre estas reglas, del deber del anfitrión de acoger y proteger a su huésped nos lo cuenta Ismail Kadaré en la novela Abril Despedaçado.
En la novela, un niño es asesinado en su pueblo por un forastero. Los hermanos del muchacho, al conocer la noticia, salen en persecución del asesino, cuya única posibilidad de escapar es ponerse bajo la protección de alguien como su huésped. Llama entonces a la puerta de la primera casa que encuentra y pide hospitalidad. Como en un espejo invertido de la lógica del dar, la hospitalidad solicitada no puede ser negada, y el hombre que abre la puerta le da la bienvenida y le ofrece alojamiento y comida por una noche. Mientras están comiendo, de repente la puerta se abre y entran los hermanos del muerto. Al ver al asesino, sacan sus armas, pero son detenidos por un gesto del hombre, que levanta la mano y dice: “es nuestro huésped”. Todos se sientan juntos, terminan su comida, el asesino convertido en huésped se va a dormir y a la mañana siguiente sus anfitriones lo escoltan hasta las afueras del pueblo para protegerlo de aquellos que le persiguen...
Zelensky es un huésped invitado para ser humillado públicamente por anfitriones más poderosos que él. Los códigos de honor siempre nos hablan de la obligación fundamental de los superiores de no avergonzar ni humillar a quienes son inferiores a ellos. El incumplimiento de esta regla básica tiene como efecto final no la degradación de la persona humillada, sino más bien la revelación de la pequeñez de quien humilla.
Cuando un inferior rompe una regla de etiqueta y ofrece su mano a su superior, esa mano que no debería haber sido extendida se convierte en una mano que no puede ser rechazada. Ahí reside la grandeza que prescriben tantos códigos de cortesía y civilidad.
¿Zelensky fue realmente humillado? ¿Ante quién?
La vergüenza de ser poderoso
La escena resonó en todo el mundo y generó numerosas expresiones de apoyo por parte de los líderes europeos. Emmanuel Macron pidió respeto para los ucranianos; Donald Tusk, de Polonia, reiteró que los ucranianos “no están solos”; Luís Montenegro y Pedro Sánchez reiteraron el apoyo de Portugal y España, y Ursula von der Leyen, presidenta de la Unión Europea, manifestó su solidaridad.
En una publicación del 3 de marzo de 2025 en la cuenta de Instagram del New York Times, titulada “EE. UU. suspende toda la ayuda militar a Ucrania, dice la cuenta oficial de Trump”, hay cinco mil setecientos ocho comentarios (al 1 de junio de 2025). Hay elogios a Trump, publicaciones esporádicas que ofrecen interpretaciones alternativas de la escena, advertencias críticas sobre una supuesta alianza entre Trump y Putin y manifestaciones que condenan la actitud de Trump y J.D. Vance hacia el presidente ucraniano.
Algunos ejemplos de estas condenas: “despreciable”, “¡la mayoría de los estadounidenses están con Zelensky!”, “fue embarazoso verlo para todos nosotros”, “la forma en que Zelensky fue tratado con tanta falta de respeto en la Casa Blanca es repugnante, ¡y el periodista que preguntó sobre el traje debería ser humillado públicamente por ello!”, “Estoy tan avergonzado de los Estados Unidos”, “repugnante y vergonzoso, estoy tan avergonzado de ser estadounidense en este momento”, “muchas, muchas disculpas, Ucrania”, “lo siento, Ucrania”, “vergüenza histórica para los Estados Unidos”, “¡uuuu, uuuu, Trump, qué vergüenza!”, “Vergüenza debería darles a ustedes, Trump y a sus partidarios (...) la mayoría de nosotros no los apoyamos”, “esto es tan vergonzoso”, “qué circo en la Sala Oval... qué vergüenza”.
Si una lectura posible de la escena es la humillación de Zelensky, estos comentarios sugieren otra comprensión. El tono de la condena es de vergüenza, con formulaciones fuertes como “vergüenza de ser estadounidense” o “vergüenza histórica para Estados Unidos”. Zelensky era, por supuesto, la parte más débil de la situación: invitado como jefe de Estado, fue tratado no como un igual, sino como un inferior desagradecido a quien se le negó el derecho a hablar. Ahora bien, ¿no dicen los teóricos de la cortesía y la civilidad que la grandeza consiste en no humillar a quienes tienen menos poder? ¿Que las disputas de grandeza deban ser entre iguales?
Invitar al más débil a someterlo a un ritual de humillación disminuye a quienes lo hacen: es lo que parecen afirmar las reacciones de los jefes de Estado y, con mayor vehemencia, de los ciudadanos estadounidenses. El historiador italiano Carlo Ginzburg decía que la capacidad de avergonzarse del propio país es un testimonio de pertenencia nacional. La escena (el “circo”) protagonizada por Trump, lejos de despertar admiración entre los ciudadanos estadounidenses, avergonzó a muchos precisamente por sus vínculos emocionales con el país.
La (in)civilidad en la política
La pregunta que resta: ¿por qué realizar este ritual de humillación delante de las cámaras?
El cientista político Bernard Harcourt, en un artículo sobre la relación entre civilidad y política, recupera el siguiente pasaje de la obra de Antoine de Courtin: “Las personas de estatus superior ‘deberían al menos, para su propio beneficio, ser buenas con sus sirvientes domésticos y civilizadas y honestas con aquellos que no son sus dependientes’, recomendaba de Courtin”. Basando su argumento en obras clásicas sobre la civilidad, Harcourt comenta sobre la interrelación entre la civilidad y el poder, afirmando que la incivilidad en la política es a menudo el único recurso que les queda a los excluidos de la corriente principal para hacerse oír. Por lo tanto, acusarlos de incivilidad sería prerrogativa de quienes tienen el poder de hacerse oír y pueden, por tanto, prescindir del discurso incivilizado. Por lo tanto, la acusación presupone un lugar de privilegio: puedo condenar la incivilidad porque no la necesito para hacerme oír, y con ello consolido mi posición de poder.
La trayectoria de Trump se basa en un discurso incivilizado, lleno de expresiones peyorativas dirigidas a sus oponentes: "el corrupto (Joe) Biden", "la ridícula Kamala (Harris)", "la loca Nancy (Pelosi)", por nombrar solo algunos ejemplos más suaves. Esta retórica atrae a una porción significativa del electorado estadounidense; de lo contrario, no habría sido elegido dos veces.
Según las tesis de Harcourt, podríamos admitir que hay cierta lógica en recurrir a este tipo de discurso para abrirse paso inicialmente dentro del establishment político. Esta lógica, sin embargo, está reservada para aquellos que no tienen el poder de hacerse oír.
Cuando ocupas la posición más poderosa del mundo, esta estrategia ya no tiene sentido. Porque la civilidad, como dice Harcourt, es una opción disponible para quienes disfrutan del poder y el prestigio. Y elegir la civilidad implica, en esencia, elegir el respeto por aquellos que son o pueden hacer menos. De Courtin: «Qué monstruo, en verdad, un gran señor sin ninguna civilidad».
¿Podría ser esto motivo de vergüenza para tantos estadounidenses, que ven cómo la Sala Oval se utiliza como escenario para humillar al presidente de un país frágil y quebrado que llega, por invitación, a hacer un trato en busca de apoyo?║
Palabras clave:
Maria Claudia Coelho
Emocoes
Emociones
Politica
[2] Maria Claudia Coelho es doctora en sociología, maestra en antropología social y graduada en historia. Es profesora titular de Antropología en la Universidad Estatal de Río de Janeiro, donde ejerce la docencia desde 1993. Su ensayo La espiral del mundo: breve comentario sobre las expectativas para el siglo XXI (https://www.librevista.com/la-espiral-del-mundo-x-maria-claudia-coelho-premio-librevista-de-ensayo-2021.html) fue Premio librevista de ensayo 2021. Librevista también ha publicado su Las emociones en el teatro de la política (https://www.librevista.com/las-emociones-en-el-teatro-de-la-politica-x-maria-claudia-coelho-bilingue.html)
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nº 64, julio 2025