www.librevista.com
nº 63, mayo 2025

edición bilingüe en portugués y castellano

Além da distopia

Parte 2: aberturas para outros mundos possíveis

x Luiz Eduardo Soares[1](@soaresluiz)

para Dorinha e Serena, um dia

Ver parte 1 em: https://www.librevista.com/Alem-da-distopia-Mas-alla-de-la-distopia-x-Luiz-Eduardo-Soares-Parte-1-Cuestoes-teoricas-pendentes-na-ezquerdas-Cuestiones-teoricas-pendientes-en-las-izquierdas.html

Sherazade Imagen Wikipedia

PDF metro

A referência maior da filosofia política do futuro talvez seja uma personagem ficcional feminina, de origem popular persa, árabe e indiana: Sherazade[2]
Luiz Eduardo Soares

 

O que se pode antever no futuro relativamente próximo?
Uma ousadia especulativa.
Distopia 1

Proponho aplicar a imaginação a realidades que já se encontram entre nós, embora não sejam inteiramente perceptíveis ou apenas se insunuem como ensaios exploratórios e se apresentem como experiências marginais. Haverá exageros, mas até mesmo o velho Weber de certa maneira autorizou a ousadia especulativa, quando reconheceu que a análise sociológica envolvia exagerar aspectos no intuito de destacar determinadas características do objeto e identificar tendências. Então, ao trabalho.

Talvez venhamos a viver sob um tipo de capitalismo transnacional circunscrito ─uma espécie curiosa de globalização pocket, em que nichos se comunicam mundo afora, indiferentes a seus entornos. Nesse caso, mudará inteiramente de feição a problemática que cerca a hegemonia do dólar ou de qualquer moeda que garanta circulação transnacional, remetendo o valor a uma base institucional estável que lhe sustente a credibilidade. Ao contrário, cripto moedas circularão em cestas virtuais e seu suporte será menos político do que militar, muito mais provisório e circunscrito a setores econômicos específicos. A estabilidade tenderá a ser cada vez mais restrita no espaço e no tempo, e as reservas de valor, em vez de dependerem do futuro, isto é, de expectativas, tenderão a buscar realização ágil. O efeito de um rearranjo desse tipo sobre o comércio internacional seria brutal. A dispersão das cadeias produtivas seria profundamente afetada. Se a isso somarmos as restrições impostas pela emergência climática à produção agrícola, compreenderemos que esse quadro seria de decrescimento em grande escala. Dada a crise ambiental e a importância da força militar, o investimento seguro dos oligarcas visará mais e mais recursos naturais estratégicos e a segurança privada. Seus alvos incluirão, por exemplo: condomínios hiper-blindados, paisagens avulsas falsas ─efeitos visuais de realidades alternativas para iludir eventuais intrusos─, máscaras e cosméticos refratários à identificação facial ─humana ou por câmeras─, equipamentos de proteção de indivíduos e coletividades, edificações e territórios, além de armas e seus operadores, como milícias privadas e equipes de mercenários ─voltaremos aos exércitos dos baronatos d’antanho, reconfigurados. Como já acontece, os mercenários atuarão ao lado de robôs, operando IAs hackers e drones, além de miríades de armas ditas menos-letais, que serão produzidas em grande escala. Essa realidade, vale insistir, já está entre nós. Reportagem da BBC News, Washington, assinada por Bernd Debusmann Jr, publicada em 10 de março de 2022, noticiava que a ex-soldados multilíngues, dispostos a entrar secretamente na Ucrânia, estavam sendo oferecidos até US$ 2 mil por dia ─mais bônus. O site que anunciava a oportunidade chamava-se Silent Professionals e se dedicava ao recrutamento de profissionais do setor militar e de segurança privada.

Elon Musk não planeja fugir para Marte, quer blindar sua parte de Marte na Terra. Isso basta. O expansionismo colonial nos moldes arcaicos está condenado a ser peça de museu. Ao imperialismo bastará reter o controle sobre fontes de água e de materiais raros. As burguesias tenderão a concentrar-se em núcleos armados, nas regiões menos vulneráveis de diferentes países. Agirão com selvageria cada vez menos hipócrita e mascarada, relativamente a populações locais, provavelmente condenadas à marginalização irreversível. Os Estados nacionais tenderão a reconhecer o caráter irremediável de sua vassalagem aos poucos Estados efetivamente soberanos que persistirão. Ante Estados debilitados, se fortalecerão os oligarcas e as dinâmicas de balcanização. Profissionais militares –policiais ou não- migrarão para a segurança privada, cujos nomes passarão a ser “Unidades de Defesa”, “Brigadas Anti-Crime”, “Empreendedores Privados da Ordem Pública” ou ainda “Crime-free Zone Keepers”.

 

Distopia 2

Em outras palavras: as desigualdades internas às sociedades e entre nações tenderão a se ampliar; o abismo entre os níveis tecnológicos das respectivas Forças Armadas se tornará intransponível; a margem de resistência se reduzirá, e o destino desse itinerário será, inexoravelmente, a rendição -de resto, já em curso-, sob a forma de integração à esfera de domínio de uma ou outra potência imperialista -nesse aspecto, nenhuma novidade. Eventuais surtos nacionalistas serão esmagados como estertores intempestivos. A categoria “nação” deixará de se associar ao conceito “soberania”. Enquanto sofrem as consequências de seus respectivos declínios nacionais, os povos que ainda experimentam alguma participação formalmente democrática tentarão, sem sucesso, deter a erosão institucional, proveniente da mercantilização crescente da política. A ideia de autonomia relativa da política dará lugar à sua indisfarçável subordinação aos grandes interesses econômicos -mais ostensivamente do que se verifica, hoje. A diferença entre política e força, entre legitimidade e domínio, diferença que chegou a ser sinônimo de modernidade, declinará, perdendo valor e sentido, no rastro da absorção da política pela economia -e, nesta, vão se impor ainda mais o capital financeiro e de plataforma. Mídias corporativas nacionais poderosas talvez acumulem mais poder, fundindo-se às novas mídias, oligopolizadas e transnacionalizadas.

 

Distopia 3

Que papel cumpriria ao Judiciário e ao sistema de Justiça criminal, se o curso dos eventos for tão sinistro quanto aqui se supõe? Vale especular, quanto mais não seja para que as hipóteses sombrias sirvam de alerta.
A compra velada de sentenças talvez venha a ser desnecessária, quando as penas forem inteiramente monetizadas. A autoridade judiciária se reduzirá a aplicações da inteligência artificial e o tempo de privação de liberdade será calculado a partir de unidades de tempo medidas por geração potencial de riqueza e/ou fruição potencial da liberdade, fruição afinal propiciada pela capacidade diferenciada de consumo.

Parece delírio distópico? Essa hipótese já foi debatida em círculos neoliberais e está perfeitamente em linha com a desigualdade com que são tratadas vidas e mortes (pela Justiça, por forças policiais e na vigência concreta das dinâmicas econômicas), segundo classe, raça ou cor, e territórios, em países como o Brasil. O genocídio em Gaza é a ilustração mais eloquente e monstruosa.

 

Distopia 4

O que esperar quanto à autonomia das esferas sociais e institucionais, essa arquitetura tão tipicamente moderna que se confundiu com a própria modernidade? Considerando-se o contexto esboçado, haverá menos espaço para a cooptação de segmentos sociais ─como funcionários, cientistas, intelectuais, jornalistas, artistas, operadores do direito e sacerdotes das diversas confissões religiosas, médicos, enfermeiros, atletas, engenheiros, técnicos especializados, burocratas ou mesmo policiais─ e desaparecerá o que outrora denominamos espaço público, já em vias de extinção. Em vez de cooptação, a dinâmica mais provável será menos sutil e menos sujeita a ambiguidades, oscilações e interpretações. Não parece despropositado prever que a cooptação venha a ser substituída por adestramento e abdução, prestação de serviço sem intermediários e mediações, com menos regras e referências normativas universais e mais vassalagem.

Ou seja, saem as chamadas camadas médias e entra a classe trabalhadora sob nova direção, compostas por outros personagens, expostos a novos tipos de subalternidade. Princípios e ideias como autonomia e liberdade profissional seriam assim atropelados pela dependência, em relações de trabalho modeladas pelo cumprimento de tarefas ou realização de produtos ─este processo já está em andamento, e em estágio avançado. Vigilância seria relativamente dispensável, porque o produto (ou o serviço) estaria bem delimitado pela encomenda.

 

Distopia 5

Para as massas ─envolvendo o que hoje são diferentes classes ou extrações de classe─, essa prospecção promete o inferno dantesco; para as elites, o quarto ao lado. E o quarto ao lado, convenhamos, por mais blindado que seja, e protegido, não tem como eliminar integralmente sua vulnerabilidade, nem a vizinhança com o horror, nem algum grau de contágio. Quer dizer, esse futuro tampouco parece muito atraente para os donos do poder. Mesmo que recriem Miamis privadas em seus óculos imersivos e se fartem no sexo virtual, e se embriaguem com drogas sintéticas, impressas em três D, mesmo assim a convulsão, embora desordenada, estará ao lado, pulsando, incandescente. Sem encaminhamentos laicos e políticos, o espírito humano só encontrará consolo em novos e velhos milenarismos. Em poucas palavras: o quarto ao lado não garante a salvação ─e talvez aí resida (parte de) nossa força.

 

Além da distopia: contradição, rotas de fuga, debilidades sistêmicas, pontos de inflexão, aberturas para outros mundos possíveis, hipóteses revolucionárias, alguma chance, enfim, para o futuro.
Contradição 1

Ante um quadro assim distópico e perturbador, vale recorrer, ainda uma vez, à velha hipótese da contradição para identificar rotas de fuga, debilidades sistêmicas, pontos de inflexão, aberturas para outros mundos possíveis, hipóteses revolucionárias, alguma chance, enfim, para o futuro. Não me refiro exclusiva, nem necessariamente, à contradição encarnada em classes sociais, uma delas representando o universal e preparando a síntese dialética. O choque estrutural (e estruturante) de classes continua sendo uma realidade, sobretudo se ajustarmos os conceitos a uma linguagem teórica livre de determinismos evolucionistas e das tentações salvacionistas que tornaram a inspiração genial de Marx cativa de milenarismos dogmáticos e autoritários. Portanto, a luta por melhoria das condições de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras permanece sendo um caminho fundamental para evitar o progresso da via distópica, desde que essa luta logre resistir à sua apropriação pelo populismo de ultradireira ─o que, por sua vez, exige mais politização e menos corporativismo, mais engajamento ideológico e menos anarco-sindicalismo (ainda presente, sob novos formatos). Ilude-se o governo democrático que opere apenas na clave do atendimento de demandas populares e concessões materiais no varejo, desconhecendo disputas ideológico-valorativas e a ameça de que a ultradireita sequestre suas pautas.

Essa questão assume especial relevância, quando se leva em conta que o neo-fascismo não tem compromisso inequívoco e indissolúvel com nenhum modelo econômico compatível com o predomínio do capital. Na verdade, tem se mostrado permeável e flexível, disposto a unir-se a diferentes tipos de organização capitalista, desde o neoliberalismo radical libertariano até o capitalismo de Estado. Lembremo-nos dos nacionalismos autoritários “terceiro-mundistas”, aos quais a hipertrofia da arrogância imperial trumpista pode conferir ares de atualidade e fazer ressurgir (ou fortalecer), em novas configurações. Evidentemente, a volubilidade econômica do neofascismo não se dá sem custos, divisões, perdas e conflitos, mas não seria prudente descartar a importância e o perigo dessa promiscuidade. A história demonstrou que o nazifascismo flertou tanto com o corporativismo quanto com a aposta no mercado, à la Von Mises e Hayeck -além disso, o que hoje chamaríamos keynesianismo de guerra fez parte do jogo. A título de ilustração, observe-se que, no Brasil, não se pode descartar um eventual realinhamento do bolsonarismo com versões estatistas do nacionalismo militar de ultradireita, que se disponha, por exemplo, a entregar a Amazônia à depredação completa e irreversível e a fortalecer o agronegócio, em troca do abandono da austeridade fiscal (que hoje defende, histericamente), garantindo benesses às classes subalternas e revigorando alianças com igrejas evangélicas. Isso tudo em consórcio com Trump ou com os Brics. Quando se trata de disputa pelo poder, o neofascismo é capaz de fazer inveja aos camaleões.

Os ideólogos da ultradireita divergem entre si, mas concordam quanto ao essencial: manter e ampliar a hegemonia do capitalismo de plataforma, financeirizado, e conter nas margens as massas condenadas à extinção pela hecatombe ecológica. No mais, adaptam-se. Bannon, Musk et caterva conviverão bem com Milei, Orban e Bolsonaro, reconhecendo que a hegemonia a que aspiram para o capital é inseparável da guerra cultural que lideram e difundem (não têm a ilusão de que a vencerão, o importante para o projeto é a própria guerra).
Além da exploração capitalista do trabalho, há outros eixos em que a luta pelo poder social está em jogo, gerando iniquidades, espoliações, subalternidades e sofrimentos diversos ─mas também suscitando agregações potencialmente transformadoras. Refiro-me a relações raciais e entre gêneros. O patriarcalismo é uma vertebração de poder que se articula com a ordem dos domínios de classes e que também atravessa o racismo estrutural, radicado, historicamente, no colonialismo e na escravidão. Por isso, são e serão crescentemente decisivos os movimentos feministas e antirracistas, e em defesa das sociedades originárias.

 

Outra contradição relevante dá-se entre individualismo e individuação.
Contradição 2

Explico[3] .
A economia de mercado, quanto mais se complexifica e dinamiza, mais estimula o desenvolvimento do que se convencionou chamar individualismo, uma forma de vida, de visão de mundo e de relacionamento com os outros cujas características são o egoísmo, o privilégio exclusivo concedido ao interesse próprio e a competitividade sem limites. Ocorre que esse processo carrega consigo um potencial revolucionário. Em outras palavras, a formação do indivíduo como experiência subjetiva ─correspondente à afirmação da individualidade como categoria cultural, como valor e como sujeito de direitos— abre a possibilidade de que os seres humanos se reinventem, criativamente, rebelando-se contra classificações sociais. É como se o individualismo se radicalizasse tanto que rompesse a fronteira, quebrasse o espelho e atravessasse o umbral, alcançando outro território.

A radicalização da individualidade pode explodir a conexão obrigatória corpo-sexualidade-gênero, e esta é apenas uma ilustração do repertório ilimitado de alternativas abertas à criatividade humana. Essa mudança implica a supressão de preconceitos, estigmas e classificações institucionalizadas. Suprimir o sistema de produção de identidades institucionalizado significa transformar as instituições e as estruturas de poder, afetando a ordem econômica. Essas transformações são possíveis apenas se a demanda por respeito radical à individualidade deixar de ser individual, solipsista ou autorreferida e se tornar interpelação social em nome de valores universalizáveis. Nada mais gregário e politizado do que o movimento pelo direito à auto-criação, até porque pressupõe a defesa da igualdade, da universalidade desse direito. E a defesa desse direito implica a demanda pela provisão por parte do Estado das condições materiais necessárias ao exercício desse direito e à sua fruição universal. O modo de produção capitalista não cabe nesse futuro: esse indivíduo (aqui considero o tipo ideal, isto é, o modelo que descreveria a nova realidade) não se confunde com o consumidor, o proprietário, o ator racional no sentido utilitário da palavra (que age exclusivamente calculando custos e benefícios), não é cooptável e não está disposto/a a aceitar passivamente a naturalização das instituições, das leis, do poder e do status quo. Trata-se de um sujeito resiliente e impetuosamente anti-hegemônico.

A realização desse direito também depende de uma linguagem compartilhada e do pertencimento a uma comunidade –composta por sujeitos diversos mas regidos pelo princípio da igualdade. A articulação entre essas comunidades engendra uma coalizão política cuja bandeira e razão de ser é a universalização do direito à livre auto-exploração da individualidade. É evidente que esse fenômeno só se torna transformador, sócio-economicamente, quando se politiza, isto é, se converte em movimento coletivo, politicamente orientado para a promoção das mudanças estruturais. Por isso, não pode ser o único fator –claro que há as classes e seus conflitos, assim como inúmeras lutas específicas, como as das mulheres, dos negros, dos indígenas, e de tantas minorias oprimidas-, nem será necessariamente o mais importante, mas creio que tende a ser crescentemente relevante e, em o sendo, qualificará eticamente (ou mesmo esteticamente) a política e as mudanças. Até porque o que está em jogo no fenômeno individualizante são dinâmicas que atravessam e potencializam os diversos movimentos. A chamada política de identidades se fortalece com a emergência da individualidade radicalizada e tende a realizar potenciais universalizantes, superando fronteiras que ainda separam as lutas, na medida em que dilui as próprias identidades pessoais e grupais, expandindo o campo das experimentações de si e da sociabilidade. O mesmo vale para movimentos ambientalistas, que se beneficiam de alianças historicamente construídas com as dinâmicas da nova individuação.

Conhecer o processo potencialmente disruptivo de individuação e sua fertilidade agregadora pode ajudar, nas disputas políticas, a impedir a apropriação de pautas das classes populares por movimentos neofascistas. Novas alianças cruzadas entre trabalhadores e argonautas da individuação podem vir a cumprir papéis decisivos, sobretudo no momento em que religiões neopentecostais avançam, coligando-se preferencialmente à ultradireita.

 

Contradição 3

A terceira contradição ─ou hub de contradições─ se verifica entre a expansão dos meios virtuais de comunicação e o controle exercido, via algoritmos (e garantias legais negociadas com poderes hegemônicos nacionais e transnacionais), pela oligarquia proprietária de tais meios, a nova burguesia da economia de plataformas. As bigtechs não são redutíveis a meios de comunicação, como sabemos, porque além de interferir em disputas políticas, erguem e destróem hegemonias ideológicas, armazenam dados, ordenam relações econômicas, estruturam comércio, serviços e finanças.
As plataformas digitais e a inteligência artificial, mutuamente potencializadas, apontam para um futuro de substituição e deslocamento do trabalho humano, gerando um panorama não apenas de desemprego, declínio das condições de vida dos trabalhadores e crise social, mas de desnorteamento dramático, provocado pelo colapso tanto dos suportes materiais para a reprodução da vida, quanto dos mapas cognitivos que ─embora atualmente já abalados pela precarização e pejotização do trabalho─ ainda oferecem alguma segurança emocional. A cartografia vigente situa ─apesar de fazê-lo em progressão decrescente─ grupos e indivíduos diante de referências, oportunidades e alternativas mais ou menos acessíveis -de educação, moradia, transporte, acesso a consumo, pertencimento a coletividades e tessitura de laços afetivos e de proteção recíproca, simétrica ou assimétrica. O mapa ─feito de informações compartilhadas e rotinas experimentadas e difundidas─ permite que se trafegue pelo cotidiano, tornando os desafios e os códigos de conduta inteligíveis e operativos ─e transferíveis a gerações futuras. Graças ao mapa, é viável esboçar projetos e cursos de ação, em certa medida antecipar trajetórias e investir em vias possíveis de construção de relações de família e trabalho, entre outras.

Bigtechs e IA dissolvem as cartas de navegação que tornam a vida social minimamente previsível e domesticável, apesar dos imensos problemas ─desigualmente distribuídos. No passado, falava-se de emprego; depois, trabalho (autônomo, informal); na sequência, empreendimento individual ou “corre” e “viração”, nas gírias brasileiras. Com a liquidação dos direitos e a liquefação das estruturas produtivas e de serviço tradicionais, com as mudanças radicais na divisão social do trabalho, com o declínio do Welfare-State (mesmo em suas versões fracas) e das proteções trabalhistas (via seguros, estabilidade ou renda mínima), com a afirmação da hegemonia neoliberal, a contração fiscalista das políticas sociais, tudo isso combinado às transformações culturais profundas nas relações entre gêneros, a emergência do mundo regido pelo casamento entre plataformas digitais (algoritmizadas) e Inteligência Artificial corresponde a uma verdadeira devastação social e psíquica.

O horizonte está sendo desenhado pela contagem regressiva na necessidade de participação humana no transporte de pessoas e produtos, turismo e moradia, comércio e produção, alcançando educação, medicina, cultura e entretenimento. Nesse sentido, se o salve-se-quem-puder prevalecer, o capital se regozijará pelo descarte do trabalho e pelo triunfo contra resistências, que tenderão a sofrer com divisões, fruto da despolitização, e com inevitáveis conflitos fratricidas. Se o domínio de classe já se mascarava, por meio do fetichismo da mercadoria, até mesmo ante a personificação extravagente da burguesia no período da acumulação primitiva, pode-se imaginar quão simples será fazer desaparecer do campo de percepção popular o baronato espoliador, na era da digitalização universal. Tempos de identificação facial generalizada seriam também tempos de despersonificação radical dos novos senhores. 

Por isso, talvez já tenha se tornado obsoleto reivindicar regulamentação das redes sociais e da atuação das plataformas. Elas saberão adaptar-se. Normas não as deterão. Talvez a luta que elas travam contra qualquer regulamentação seja falsa, mero expediente para criar uma cortina de fumaça que mantenha fora das agendas públicas o que elas verdadeiramente temem: a expropriação (publicização) de seus maiores recursos de poder e riqueza, os algoritmos, operadores sigilosos, e os bancos de dados, seu tesouro.

Por outro lado, seria regressivo, obscurantista e irrealista atacar a Inteligência Artificial, enquanto recurso tecnológico, cujos benefícios para a humanidade não devem ser subestimados. Em vez de expropriação dos meios de produção e sua subordinação a um Estado ditatorial socialista, a contradição em pauta pode encetar um movimento pela coletivização de algoritmos e informações, cuja apropriação pública funcione como esteio de uma democracia de massas, sob hegemonia dos trabalhadores.
Para enfrentar as bigtechs, além da disputa jurídico-política, não basta difundir a consciência crítica; é preciso investir na criação de redes e plataformas regionais, monitoradas por conselhos populares. IA e plataformas a serviço de cooperativas locais de trabalhadores abririam novas perspectivas positivas. É fundamental que experiências piloto forneçam exemplos de sucesso para que o processo se expanda.

Faz parte do desnorteamento ─provocado pela desestruturação do mundo do trabalho, pelo esgotamento do repertório convencional de profissões e por mudanças culturais profundas─ a crise dos projetos individuais e coletivos, uma vez que o novo estado de coisas inibe cálculos prospectivos e converte o futuro numa nebulosa incompreensível. A inundação de informações, via redes sociais, e a perceptível complexificação do presente tornam o dia a dia crescentemente indecifrável e os anos vindouros imprescrutáveis. Abandonado pelos políticos (que há muito trocaram a estratégia pela tática, e sobrevivem da mão para a boca, de eleição em eleição) e pelos cientistas sociais (que por lucidez e prudência ─justificadamente, portanto─ evitam ousar previsões), o futuro é colonizado pelas religiões, sem concorrência, e ocupado pela fábrica de distopias em que se converteu a imaginação ficcional mais ambiciosa.

A tudo isso, adere o efeito desorientador da adicção às telas, desde a infância. Saudemos a intuição prodigiosa de David Foster Wallace, que escreveu, nos anos 1990, um romance extraordinário e copioso em torno dessa antevisão sombria, Infinite gest. Já não se trata de alienar, falsificando a realidade e inculcando visão de mundo, mas de produzir uma economia neuronal refratária à sintaxe, entendida como encadeamento lógico sem o qual nenhuma linguagem subsiste, muito menos diálogos ou reflexões críticas, para os quais são imprescindíveis argumentações, as quais, por sua vez, exigem atenção e foco, paciência e concentração estável: é preciso ater-se a enunciados sequenciais e a suas derivações e inflexões. O alvo da guerra surda que as plataformas travam, seduzindo audiências sempre individualizadas, é a Paideia afetivo-intelectual que nos deu boa parte do que de melhor herdamos do passado, Paideia que se associa à ética da conversa e do encontro, do convívio com o Outro (interno e externo), da escuta e da aventura que é pensar e imaginar. O que se recalca, quando o sujeito se apassiva, enganchado na sequências veloz de imagens avulsas, é o exercício da liberdade. Fluxos bioquímicos engatam nas telas como substâncias adictivas e mesmo não se tratando de proselitismo em benefício de determinada visão de mundo, é claro que esse processo que altera a consciência (e a forja, de certa maneira) reforça inclinações e valores compatíveis com a extrema direita, na medida em que privilegia a desconexão, a apreensão de fatos no varejo e separadamente, e só tolera o que ultrapassa os limites de cada unidade (de tempo e de narrativa) se as ligações se mantiverem na superfície. Por isso, os impactos retóricos e imagéticos se afirmarão com mais vigor do que exposições articuladas. Economia da atenção tem sido tema frequente, mas por vezes compreendida como se o problema se reduzisse a cativar (prender ou não a atenção). É mais grave: está em jogo aquilo mesmo que chamamos “atenção”. Se uma fonte alternativa tentar atrair a atenção do espectador da tela ─de quem empalma o smartphone como extensão de seu corpo─, caso seja bem sucedido, não obterá a mesma modalidade de atenção produzida no engate adictivo com a tela. Terá de produzir outro tipo de relação, cujas bases talvez já estejam erodidas pela experiência dominante. A sensibilidade ─afetivo/intelectiva─ e suas fontes neuronais não são entes passivos convocados pela tela do celular, que permanecerão os mesmos e se mobilizarão do mesmo modo quando convocados por outro objeto de interesse, humano ou mecânico. A sensibilidade e suas fontes estão sendo remodeladas na interação com as pontas de lança das plataformas, os aplicativos e sua materialização nos smartphones. Em última instância, está no horizonte a problemática da servidão voluntária, substituindo a conversão, a fé e a persuasão. Evidentemente, aqui apenas tangencio a superfície da problemática, que requer exame prolongado e profundo, e muita pesquisa empírica multidisciplinar.

Aqui está uma das novas contradições contemporâneas: o entretenimento digital algoritmizado (que é também comunicação e serve a múltiplas aplicações), mediado por telas (que serão, em breve, mais diretamente do que hoje, extensões corporais), e o que outrora chamavam espírito humano. A preocupação moralista e hipócrita com as “drogas” ─que tem legitimado tantas legislações e políticas públicas desastrosas─ possivelmente se tornará banal, senão ridícula, em breve.

Por fim, cumpre assinalar que a visualização é mútua: vê-se a tela, enquanto ela nos vê, uma vez que as plataformas registram cada toque, cada visualização, cada busca, e quanto tempo dedicamos a cada imagem, o que permite formar uma constelação de preferências e características pessoais, relevantes não só para o comércio, como se pode depreender sem grande esforço. Os riscos não devem ser subestimados. Como Foucault percebeu, o panóptico contemporâneo não nos tornou exatamente uma sociedade da vigilância, mas da apropriação dos resultados da vigilância para todos os fins imagináveis (e ainda inimagináveis). Não somos a sociedade do recalque e da repressão, mas da confissão e, voilá, do selfie. Narcisismo já não cabe para qualificar o grau de promiscuidade entre público e privado. De fato, essa dualidade tem perdido sua significação original: o público não é a ágora virtual onde se encontram sujeitos diversos, mas a projeção fetichizada da intimidade. Se os indivíduos no neoliberalismo se iludem, supondo-se empreendedores de si mesmos, no universo digital creem-se proto-celebridades em gestação. Nada a ver com o processo subversivo e liberador da individuação, descrito anteriormente.

Como se percebe, a contradição contrapõe futuros: tendências antagônicas se chocam. Vale, ainda uma vez, reiterar: a internet tem sido, preponderantemente, a esfera do autoengano e da Santa Inquisição, ocupada por personagens cosméticos e radicalmente judicativos ─afinal, essa é a lógica dos algoritmos, que promovem engajamento acelerando conflitos. Mas não devemos descartar o potencial que ela oferece para dinâmicas agregadoras, ampliação da consciência crítica e participação cidadã. A depender de quem se apropria das bases materiais e tecnológicas, de quem dirige a confecção dos algoritmos, do poder político-econômico das plataformas, das bigtechs e das organizações democráticas, rumos opostos se afirmarão.
 

Um choque entre vida e morte.
A criação de sociedades pós-capitalistas que conjugassem primazia do interesse coletivo ou social (para além de fronteiras nacionais), com valorização da liberdade para as individuações, em toda a sua radical diversidade.
O antropoceno confrontado conscientemente por um projeto político amplo e por uma coalisão estratégica que adotaria múltiplas formas ─pluralidade que dificilmente poderia ser subsumida por categorias ideológico/políticas unívocas e exclusivas

Um choque de outro tipo, que a rigor não mereceria ser denominada exatamente uma contradição ─ao menos não no sentido em que a categoria vinha sendo empregada até aqui─, opõe vida e morte, seus impulsos, suas forças e energias, seus aliados, seus regimes de atração e repulsão, suas irradiações e seus antagonismos. Vida é outra palavra mal definida, a menos que sua referência seja, por exemplo, uma espécie ou um indivíduo ─ainda assim persistiriam ambiguidades. De todo modo, esse preâmbulo prepara a menção a um dos fundadores da “modernidade”, Charles Darwin ─a natureza e suas potências─, cujo retorno ao centro do palco é matizado e enriquecido pela nova experiência de mundo que nosso tempo proporciona. Experiência que inclui novas tecnologias, novos conhecimentos e o novo repertório de possibilidades da vida coletiva, acessível a mais gente graças à etnologia, à arqueologia e às artes do imaginário. Não é preciso render-se à lógica do mito para admitir que forças tectônicas se batem, quando vacila o equilíbrio tenso, esteio da estabilidade, em tantos níveis fundamentais para a vida no planeta ─não só humana. O estremecimento que sentimos no plano psíquico provavelmente se comunica, por canais ainda hoje insondáveis, com os abalos sísmicos em curso, da biologia à política. Há muito que ignoramos, mas o que sabemos é suficiente para reconhecer a multidimensionalidade da crise.

A transição energética talvez possa abrir passagem à contradição biossocial e colocar em marcha a grande diáspora, separando os dois campos, da vida e da morte, digamos assim para simplificar: em ambos os lados se encontram grupos sociais, práticas, modos de ser, arranjos organizacionais, tipos de produção, relações de poder, tecnologias, estratégias de sobrevivência, saberes, valores e objetos. A transição da via do colapso para a via da vida envolveria não apenas a mudança das fontes de energia, mas a mudança das finalidades a que se destina a energia. A única forma de dar curso a usos positivos da energia implicaria, além da preservação de sociedades originárias, a criação de sociedades pós-capitalistas que conjugassem primazia do interesse coletivo ou social (para além de fronteiras nacionais), com valorização da liberdade para as individuações, em toda a sua radical diversidade.

O antropoceno, cuja matriz foi a acumulação primitiva de capital e cujo destino o condenou a por-se a si mesmo em xeque ─destruindo suas próprias condições de possibilidade─, seria enfim confrontado conscientemente por um projeto político amplo e por uma coalisão estratégica que adotaria múltiplas formas ─pluralidade que dificilmente poderia ser subsumida por categorias ideológico/políticas unívocas e exclusivas.

Nesse contexto, ganha mais importância o confronto entre métodos de cultivo da terra, como a agrofloresta e as monoculturas que o agronegócio implementa em latifúndios predatórios (assentados na expropriação violenta dos pequenos produtores campesinato -incluindo ribeirinhos e quilombolas). Tais métodos são muito mais que formas produtivas, versões contemporâneas do conflito histórico entre plantation colonial e campesinato. São modos de produção, articulados a distintos projetos sociais e políticos, hoje subsumidos à hegemonia do capital. São matrizes contrastantes de interação com a natureza e o trabalho, que envolvem compromissos distintos com a vida em sociedade e a morte das espécies, do clima, da biodiversidade. O projeto de poder do agronegócio é indissociável de um certo tipo de integração subalterma do Brasil nas cadeias globais produtivas e comerciais. O modelo arcaico de exportação de bens primários e importação de manufaturados corresponde à via autoritária de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, à nossa modernização conservadora. Contudo, a diferença entre a grande produção rural capitalista e as iniciativas inovadoras agroflorestais, orientadas pelo incremento de uma produtividade sem agrotóxicos e ambientalmente sustentável ─envolvendo reflorestamento e outras técnicas ecologicamente saudáveis─, impacta também a qualidade de vida da população, sobretudo de baixa renda, cada vez mais consciente do que significa uma alimentação saudável. Não se trata somente de mercado mais exigente e consumo seletivo. Sabemos quão relevantes foram os estudos, lidos com entusiasmo a partir dos anos 1990, sobre práticas de consumo e evolução da cidadania. No entanto, em vez de consumo, estão em tela de juízo, desde já e com crescente senso de urgência, estratégias coletivas de auto-defesa ante riscos graves, provocados seja pela contaminação dos alimentos, seja pelas consequências letais do desmatamento, com a explosão de epidemias (eventualmente, pandêmicas), seja pelo envenenamento das redes fluviais. Não é preciso acrescentar as implicações dos desastres, principalmente ─mas não só─ para as classes populares, em parte derivados do que se faz no campo: inundações, alagamentos, incêndios, dsertificação, elevação do nível do mar, ondas de calor. Se vida e morte não servem como polos de uma contradição decisiva, que tal renomeá-los: economia capitalista e sobrevivência da(s) espécie(s)?

Em certa medida e até certo ponto, o reconhecimento da centralidade dessa contradição requalifica a problemática da chamada transição energética. Essa transição, politicamente turbinada, passa a envolver uma luta por hegemonia moral, intelectual e afetiva, de novo tipo ─associando aspectos da melhor tradição das lutas sociais com novas questões e valores, e uma nova estética. O novo enquadramento incluiria como três dos temas centrais a crítica ao patriarcalismo, o antirracismo e a multietnicidade na construção de uma sociedade plurinacional. Incluiria, portanto, a necessidade de conferir liderança, mais que protagonismo, às mulheres, ─e às mulheres negras─, evidentemente e à representação de sociedades originárias. Adotando aqui vocabulário de movimentos feministas, a ética do cuidado deveria sobrepujar a ética do poder ─e de seu corolário econômico. O socialismo ambiental feminista antirracista e pluriétnico, mobilizando discursos, afetos e todo um imaginário refratário a tradições autoritárias, constitui, a meu juízo, a única perspectiva capaz de redefinir a disputa em torno da transição energética, entendida como o ponto nevrálgico do conflito contemporâneo, desde que inclua a constelação de temas pertinentes à mudança estrutural das sociedades.

Não parece razoável supor, contemplando a história que nos trouxe até aqui, que o autoritarismo possa ser vencido em ambiente patriarcal e que a exploração do trabalho humano possa ter fim em ambiente capitalista, e que valores como equidade e liberdade possam ter vigência em ambiente racista. E com certeza sabemos que a vida não é possível em ambiente degradado pelas novas condições climáticas. A bandeira a defender terá de ser constelada, multicolorida, e aplicada em todas as pequenas e grandes lutas, em todos os fronts, com todas as vozes. Não haverá caminho único nem seguro, nem certeza de vitória ─palavra que, aliás, não faz qualquer sentido, posto que vitoriosas serão as lutas que prorrogarem suas condições de possibilidade, e a seu triunfo daremos o nome de esperança. A referência maior da filosofia política do futuro talvez seja uma personagem ficcional feminina, de origem popular persa, árabe e indiana: Sherazade.║

 


[1] Luiz Eduardo Soares é um pensador brasileiro, ator político, acadêmico, antropólogo, sociólogo, cientista político, escritor literário, ex-Secretário Nacional de Segurança Pública (em 2003, primeiro governo Lula), ex-Coordenador de Justiça, Segurança e Cidadania do Rio de Janeiro (1999-2000). Para saber mais sobre seus cargos, publicações e trabalhos, visite www.luizeduardosoares.com.


[2] Scherazade é a personagem principal e narradora da coleção de contos em farsi intitulada Mil e Uma Noites. A história, capítulo por capítulo, conta que o sultão Shahriar (em persa: "rei") se casava com uma virgem todos os dias e a decapitava no dia seguinte. Ele fez tudo isso como vingança, pois descobriu que sua primeira esposa o estava traindo. Ele já havia ordenado o assassinato de três mil mulheres quando conheceu Scheherazade. Filha do Grão-vizir de Shahriar, Scherazade se oferece ao rei contra a vontade de seu pai, para apaziguar sua ira. Uma vez nos aposentos reais, Scherazade pede ao sultão que se despeça definitivamente de sua amada irmã, Dunyazad. Ao atender seu pedido e encontrar sua irmã, ela pede uma história, como Scherazade havia planejado secretamente, e então a esposa do sultão começa uma narrativa que dura a noite toda. Scherazade mantém o rei acordado, ouvindo com espanto e interesse a primeira história, de modo que ele pede que o conto continue, e Scherazade alega a chegada do amanhecer para adiar a continuação até a noite seguinte. Shahriar a mantém viva em antecipação à narrativa que está por vir. O mesmo evento se repete noite após noite, conectando as histórias uma após a outra e dentro da outra, até que, depois de mil e uma noites de aventuras diversas, e agora com três filhos, o rei não apenas foi entretido, mas também sabiamente educado em moralidade e bondade por Scherazade, que de concubina se tornou a esposa do rei. O núcleo dessas histórias é um antigo livro persa chamado Hezar-afsana ou os Mil Mitos (persa: ). Fonte: tradução de Wikipédia em español, Scherazade.


[3] Os próximos três parágrafos resumem, com pequenas alterações, trechos de Soares, Luiz Eduardo. O Brasil e seu duplo (Todavia, São Paulo, 2019). A tradução do livro, de Rodrigo Álvarez, foi publicada pela editora argentina Prometeo Libros, em 2021, com o título Brasil y su doble; patriarcalismo capitalista, revolución estética y utopía libertaria.

 

Palavras de referencia: 

Luiz Eduardo Soares
Distopia
Esquerda
Izquierda

Sigue la traducción (ed.) al castellano

Más allá de la distopía

Parte 2: aperturas para otros mundos posibles

x Luiz Eduardo Soares[4](@soaresluiz)

para Dorinha e Serena, um dia

Scherazade, Imagen de Wikipedia

La mayor referencia para la filosofía política del futuro es tal vez un personaje femenino ficticio de origen popular persa, árabe e indio: Scherazade[5]

Luiz Eduardo Soares

 

¿Qué se puede prever para un futuro relativamente próximo?
Una osadía especulativa. 
Distopía 1

Propongo aplicar la imaginación a realidades que ya están entre nosotros, aunque no sean del todo perceptibles o sólo se insinúen como ensayos exploratorios y se presenten como experiencias marginales. Habrá exageraciones, pero incluso el viejo Weber autorizó en cierto modo la audacia especulativa, cuando reconoció que el análisis sociológico admitía exagerar aspectos para destacar ciertas características del objeto e identificar tendencias. Así que, a trabajar.

Tal vez lleguemos a vivir bajo un tipo de capitalismo transnacional circunscrito, una curiosa clase de globalización de bolsillo, en la que los nichos se comunican en todo el mundo, indiferentes a su entorno. En este caso, el problema en torno a la hegemonía del dólar o de cualquier moneda que garantice la circulación transnacional cambiará por completo, remitiendo el valor a una base institucional estable que sustente su credibilidad. Por el contrario, las criptomonedas circularán en canastas virtuales y su apoyo será menos político que militar, mucho más provisional y limitado a sectores económicos específicos. La estabilidad tenderá a ser cada vez más restringida en el espacio y en el tiempo, y las reservas de valor, en lugar de depender del futuro, es decir, de las expectativas, tenderán a buscar una realización ágil. El efecto de tal reorganización sobre el comercio internacional sería brutal. La dispersión de las cadenas productivas se vería profundamente afectada. Si a esto le sumamos las restricciones que impone la emergencia climática a la producción agrícola, entenderemos que este escenario sería de declive a gran escala. Dada la crisis ambiental y la importancia de la fuerza militar, la inversión segura de los oligarcas se dirigirá cada vez más a los recursos naturales estratégicos y a la seguridad privada. Entre sus objetivos se incluirán, por ejemplo: condominios hiperblindados, falsos paisajes –con efectos visuales de realidades alternativas para engañar a potenciales intrusos–, máscaras y cosméticos resistentes a la identificación facial –humana o por cámaras–, equipos de protección para individuos y grupos, edificios y territorios, así como armas y sus operadores, como milicias privadas y equipos mercenários, –volveremos a los ejércitos de las baronías de antaño, reconfigurados–. Como ya es habitual, los mercenarios trabajarán junto a robots, hackers y drones, así como multitud de armas denominadas menos letales, que se producirán a gran escala. Esta realidad, vale insistir, ya está entre nosotros. Un informe de BBC News, Washington, firmado por Bernd Debusmann Jr, publicado el 10 de marzo de 2022, informó que a ex soldados multilingües, dispuestos a ingresar secretamente a Ucrania, se les ofrecían hasta dos mil (2.000) dólares por día, más bonificaciones. El sitio web que anunciaba la oportunidad se llamaba Silent Professionals y estaba dedicado a reclutar profesionales en los sectores militar y de seguridad privada.

Elon Musk no planea escapar a Marte, quiere proteger su parte de Marte en la Tierra. Eso es suficiente. El expansionismo colonial en su forma arcaica está condenado a convertirse en una pieza de museo. El imperialismo sólo necesitará conservar el control sobre las fuentes de agua y materiales raros. Las burguesías tenderán a concentrarse en núcleos armados, en las regiones menos vulnerables de los distintos países. Actuarán con un salvajismo cada vez menos hipócrita y enmascarado hacia las poblaciones locales, probablemente condenadas a una marginación irreversible. Los Estados nacionales tenderán a reconocer la naturaleza irremediable de su vasallaje a los pocos Estados verdaderamente soberanos que persistan. Frente al debilitamiento de los Estados, se fortalecerán los oligarcas y la dinámica de la balcanización. Los profesionales militares, policías o no, migrarán a la seguridad privada, cuyos nombres pasarán a ser “Unidades de Defensa”, “Brigadas Anticrimen”, “Empresarios Privados del Orden Público” o incluso “Crime-free Zone Keepers” (Guardianes de Zonas Libres de Delito).

 

Distopía 2

En otras palabras: las desigualdades dentro de las sociedades y entre las naciones tenderán a aumentar; la brecha entre los niveles tecnológicos de las respectivas Fuerzas Armadas se volverá insalvable; El margen de resistencia se reducirá y el destino de este itinerario será, inexorablemente, la rendición ─ya en marcha, por cierto─ en forma de integración en la esfera de dominio de una u otra potencia imperialista ─en este sentido, nada nuevo─. Cualquier estallido nacionalista será aplastado como estertores intempestivos. La categoría “nación” ya no estará asociada al concepto de “soberanía”. Mientras sufren las consecuencias de sus respectivas decadencias nacionales, los pueblos que aún experimentan alguna participación democrática formal intentarán, sin éxito, detener la erosión institucional resultante de la creciente mercantilización de la política. La idea de una autonomía relativa de la política dará paso a su subordinación no disimulada a los grandes intereses económicos –más ostensivamente que hoy. La diferencia entre política y fuerza, entre legitimidad y dominio, diferencia que pasó a ser sinónimo de modernidad, disminuirá, perderá valor y significado, a raíz de la absorción de la política por la economía ─y, en esto, el capital financiero y de plataforma se impondrán aún más. Los poderosos medios corporativos nacionales tal vez acumulen más poder fusionándose con nuevos medios transnacionales oligopólicos.

 

Distopía 3

¿Qué papel desempeñarían el poder judicial y el sistema de justicia penal si el curso de los acontecimientos fuera tan siniestro como se supone aquí? Vale la pena especular, aunque sólo sea para que las sombrías hipótesis sirvan de advertencia.
La compra encubierta de sentencias puede resultar innecesaria cuando las sanciones se moneticen totalmente. La autoridad judicial quedará reducida a aplicaciones de inteligencia artificial y el tiempo de privación de libertad se calculará en base a unidades de tiempo medidas por la generación potencial de riqueza y/o el goce potencial de la libertad, goce proporcionado en última instancia por la capacidad diferenciada de consumo.

¿Parece un delirio distópico? Esta hipótesis ya ha sido debatida en círculos neoliberales y está perfectamente en línea con la desigualdad con la que son tratadas las vidas y las muertes (por la Justicia, por las fuerzas policiales y la vigencia concreta de las dinámicas económicas), según clase, raza o color, y territorios, en países como Brasil. El genocidio en Gaza es la ilustración más elocuente y monstruosa.

 

Distopía 4

¿Qué podemos esperar de la autonomía de las esferas sociales e institucionales, de esa arquitectura tan típicamente moderna que se confundió con la propia modernidad? Considerando el contexto esbozado, habrá menos espacio para la cooptación de segmentos sociales –como funcionarios públicos, científicos, intelectuales, periodistas, artistas, profesionales del derecho y sacerdotes de diversas denominaciones religiosas, médicos, enfermeras, deportistas, ingenieros, técnicos especializados, burócratas o incluso policías– y desaparecerá lo que antes llamábamos espacio público, ya en vías de extinción. En lugar de la cooptación, la dinámica más probable será menos sutil y menos sujeta a la ambigüedad, la oscilación y la interpretación. No parece descabellado prever que la cooptación será sustituida por el adiestramiento y abducción, por la prestación de servicios sin intermediarios ni mediaciones, con menos reglas y referencias normativas universales y más vasallaje.

En otras palabras, salen las llamadas clases medias y entra la clase obrera bajo una nueva dirección, integrada por otros personajes, expuesta a nuevos tipos de subordinación. Principios e ideas como la autonomía y la libertad profesional quedarían así atropellados por la dependencia, en unas relaciones de trabajo orientadas al cumplimiento de tareas o a la producción de produtos ─este proceso ya está en marcha y se encuentra en una fase avanzada. La vigilancia sería relativamente innecesaria, porque el producto (o servicio) estaría bien definido por la orden de producción.

 

Distopía 5

Para las masas ─incluyendo las que hoy son clases o extracciones de clase diferentes─ esta perspectiva promete un infierno dantesco. Para las élites, el cuarto de al lado. Y el cuarto de al lado, admitámoslo, por muy blindado y protegido que esté, no puede eliminar por completo su vulnerabilidad, ni la proximidad al horror, ni cualquier grado de contagio. Quiero decir que este futuro tampoco parece muy atractivo para los que ejercen el poder. Aunque recreen Miamis privados en sus gafas inmersivas y se entreguen al sexo virtual y se emborrachen con drogas sintéticas impresas en 3D, aún así la convulsión, aunque desordenada, estará ahí, pulsante, incandescente. Sin referencias laicas y políticas, el espíritu humano sólo encontrará consuelo en nuevos y viejos milenarismos. En pocas palabras: el cuarto de al lado no garantiza la salvación, y tal vez ahí resida (parte de) nuestra fuerza.

 

Más allá de la distopía: contradicción, vías de escape, debilidades sistémicas, puntos de inflexión, aperturas a otros mundos posibles, hipótesis revolucionarias, alguna posibilidad, en definitiva, de futuro.
Contradicción 1

Ante un cuadro así distópico y perturbador, conviene recurrir, una vez más, a la vieja hipótesis de la contradicción para identificar vías de escape, debilidades sistémicas, puntos de inflexión, aperturas a otros mundos posibles, hipótesis revolucionarias, alguna posibilidad, en definitiva, de futuro. No me refiero exclusivamente, ni necesariamente, a la contradicción encarnada en las clases sociales, com una de las cuales que representa lo universal y prepara la síntesis dialéctica. El choque estructural (y estructurante) de clases sigue siendo una realidad, sobre todo si ajustamos los conceptos a un lenguaje teórico libre de determinismos evolucionistas y de las tentaciones salvacionistas que hicieron cautiva la genial inspiración de Marx de milenarismos dogmáticos y autoritarios. Por lo tanto, la lucha por mejorar las condiciones de vida de los trabajadores sigue siendo un camino fundamental para evitar avanzar por la vía distópica, siempre y cuando esta lucha logre resistir su apropiación por parte del populismo de extrema derecha ─lo que, a su vez, requiere más politización y menos corporativismo, más compromiso ideológico y menos anarcosindicalismo (todavía presente, bajo nuevos formatos).
Un gobierno democrático se engaña si actúa únicamente sobre la base de satisfacer demandas populares y concesiones materiales economicistas, ignorando las disputas ideológico-valorativas y la amenaza de que la extrema derecha secuestre sus agendas.
Esta cuestión adquiere especial relevancia si tenemos en cuenta que el neofascismo no tiene un compromiso unívoco e indisoluble con ningún modelo económico compatible con el predominio del capital. De hecho, ha demostrado ser permeable y flexible, dispuesto a unirse a diferentes tipos de organización capitalista, desde el neoliberalismo libertariano radical hasta el capitalismo de Estado. Recordemos los nacionalismos autoritarios del “tercer mundo”, a los que la hipertrofia de la arrogancia imperial trumpista puede dar un aire de actualidad y hacerlos resurgir (o fortalecerse) en nuevas configuraciones. Evidentemente, la volatilidad económica del neofascismo no está exenta de costos, divisiones, pérdidas y conflictos, pero no sería prudente desestimar la importancia y el peligro de esta promiscuidad. La historia ha demostrado que el nazifascismo coqueteó con el corporativismo como con la apuesta al mercado, al estilo de Von Mises y Hayek –además, lo que hoy llamaríamos keynesianismo de guerra era parte del juego. A modo de ilustración, observese que, en Brasil, no se puede descartar un posible realineamiento del bolsonarismo con versiones estatistas del nacionalismo militar de extrema derecha, que se disponga, por ejemplo, a entregar la Amazonia a una depredación completa e irreversible y a fortalecer el agronegocio, a cambio de abandonar la austeridad fiscal (que ahora defiende histéricamente), garantizar beneficios a las clases bajas y revitalizar las alianzas con las iglesias evangélicas. Todo esto en consorcio con Trump o los BRICS. Cuando se trata de la lucha por el poder, el neofascismo es capaz de provocar envidia hasta en los camaleones.

Los ideólogos de la extrema derecha discrepan entre sí, pero coinciden en lo esencial: mantener y ampliar la hegemonía del capitalismo de plataforma financiarizado y contener en los márgenes a las masas condenadas a la extinción por la hecatombe ecologica. Además, se adaptan. Bannon, Musk y compañía convivirán bien con Milei, Orban y Bolsonaro, reconociendo que la hegemonía a la que aspiran para el capital es inseparable de la guerra cultural que lideran y difunden (no se hacen ilusiones de que la ganarán, lo importante para el proyecto es la guerra misma).

Además de la explotación capitalista del trabajo, hay otros ejes en los que está en juego la lucha por el poder social, generando inequidades, saqueo, subordinación y diversas formas de sufrimiento, ─pero también dando lugar a agregaciones potencialmente transformadoras. Me refiero a las relaciones raciales y de género. El patriarcado es una estructura de poder que está vinculada al orden de dominio de clases y que también permea el racismo estructural, históricamente arraigado en el colonialismo y la esclavitud. Por eso, los movimientos feministas, antirracistas y en defensa de las sociedades indígenas son y serán cada vez más decisivos.

 

Otra contradicción relevante es entre individualismo e individuación.
Contradicción 2

Me explico:[6]
Cuanto más compleja y dinámica se vuelve la economía de mercado, más estimula el desarrollo de lo que se ha dado en llamar individualismo, un modo de vida, de visión del mundo y de relaciones con los demás cuyas características son el egoísmo, el privilegio exclusivo concedido al interés propio y la competitividad ilimitada. Ocurre que este proceso conlleva un potencial revolucionario. En otras palabras, la formación del individuo como experiencia subjetiva —correspondiente a la afirmación de la individualidad como categoría cultural, como valor y como sujeto de derechos— abre la posibilidad de que los seres humanos se reinventen, creativamente, rebelándose contra las clasificaciones sociales. Es como si el individualismo se radicalizasse tanto que rompiera la frontera, quebrase el espejo y cruzara el umbral, llegando a otro territorio.
La radicalización de la individualidad puede hacer estallar la conexión obligatoria cuerpo-sexualidad-género, y esta es sólo una ilustración del repertorio ilimitado de alternativas abiertas a la creatividad humana. Este cambio implica la supresión de prejuicios, estigmas y clasificaciones institucionalizadas. Suprimir el sistema institucionalizado de producción de identidades significa transformar las instituciones y las estructuras de poder, afectando el orden económico. Estas transformaciones sólo son posibles si la exigencia de respeto radical a la individualidad deja de ser individual, solipsista o autorreferencial y se convierte en una interpelación social en nombre de valores universalizables. Nada es más gregario y politizado que el movimiento por el derecho a la autocreación, hasta porque presupone la defensa de la igualdad, de la universalidad de este derecho. Y la defensa de este derecho implica la exigencia de que el Estado proporcione las condiciones materiales necesarias para el ejercicio de este derecho y su disfrute universal. El modo de producción capitalista no encaja en este futuro: este individuo (aquí considero el tipo ideal, es decir, el modelo que describiría la nueva realidad) no debe confundirse con el consumidor, el propietario, el actor racional en el sentido utilitario de la palabra (que actúa exclusivamente calculando costos y beneficios), no es cooptable y no está dispuesto a aceptar pasivamente la naturalización de las instituciones, las leyes, el poder y el statu quo. Se trata de un sujeto resiliente e impetuosamente antihegemónico.
La realización de este derecho depende también de un lenguaje compartido y de la pertenencia a una comunidad, ─compuesta por sujetos diversos pero regida por el principio de igualdad. La articulación entre estas comunidades engendra una coalición política cuya bandera y razón de ser es la universalización del derecho a la libre autoexploración de la individualidad. Está claro que este fenómeno sólo se vuelve transformador, socioeconómicamente, cuando se politiza, es decir, cuando se convierte en un movimiento colectivo, políticamente orientado a promover cambios estructurales. Por lo tanto, no puede ser el único factor –por supuesto que están las clases y sus conflictos, así como innumerables luchas específicas, como las de las mujeres, las de los negros, las de los indígenas, y tantas minorías oprimidas– ni será necesariamente el más importante, pero creo que tiende a ser cada vez más relevante y, de ser así, calificará éticamente (o incluso estéticamente) la política y los cambios. Sobre todo porque lo que está en juego en el fenómeno individualizador son dinámicas que cruzan y potencian los diferentes movimientos. La llamada política identitaria se fortalece con el surgimiento de la individualidad radicalizada y tiende a realizar un potencial universalizador, superando las fronteras que aún separan las luchas, al tiempo que diluye las identidades personales y grupales, ampliando el campo de la autoexperimentación y la sociabilidad. Lo mismo ocurre con los movimientos ambientalistas, que se benefician de las alianzas construidas históricamente con la dinámica de la nueva individuación.
Comprender el proceso potencialmente disruptivo de individuación y su fertilidad agregada puede ayudar, en las disputas políticas, a prevenir la apropiación de las agendas de clase populares por parte de los movimientos neofascistas. Nuevas alianzas cruzadas entre obreros y argonautas de la individuación pueden llegar a jugar papeles decisivos, especialmente en un momento en que las religiones neopentecostales están avanzando, coaligándose preferentemente con la extrema derecha.

 

Contradicción 3

La tercera contradicción –o hub de contradicciones– se encuentra entre la expansión de los medios de comunicación virtuales y el control que ejerce, vía algoritmos (y garantías legales negociadas con poderes hegemónicos nacionales y transnacionales), la oligarquía propietaria de dichos medios, la nueva burguesía de la economía de plataformas. Las bigtech no pueden reducirse a los medios de comunicación, como sabemos, porque además de interferir en las disputas políticas, construyen y destruyen hegemonías ideológicas, almacenan datos, organizan las relaciones económicas, estructuran el comercio, los servicios y las finanzas.

Las plataformas digitales y la inteligencia artificial, potenciadas mutuamente, apuntan a un futuro de reemplazo y desplazamiento del trabajo humano, generando un panorama no sólo de desempleo, deterioro de las condiciones de vida de los trabajadores y crisis social, sino de dramática desorientación, provocada por el colapso tanto de los soportes materiales de la reproducción de la vida, como de los mapas cognitivos que ─aunque actualmente ya sacudidos por la precarización y la contratación de unipersonales─ aún ofrecen cierta seguridad emocional. La cartografía actual, los mapas de vida de las persoans, sitúa –aunque lo haga en progresión decreciente– a grupos e individuos relacionados con referencias, oportunidades y alternativas más o menos accesibles
–educación, vivienda, transporte, acceso al consumo, pertenencia a colectivos y tejido de vínculos afectivos y de protección recíproca, simétricos o asimétricos–. Ese mapa ─compuesto de informaciones compartidas y de rutinas vividas y difundidas─ permite navegar por la vida cotidiana, haciendo inteligibles y operativos los retos y los códigos de conducta ─y transferibles a las generaciones futuras. Gracias a ese mapa es posible trazar proyectos y cursos de acción, anticipar en cierta medida trayectorias e invertir en posibles formas de construcción de relaciones familiares y laborales, entre otros.

Las bigtech y la inteligencia artificial disuelven los mapas de navegación que hacen que la vida social sea mínimamente predecible y domesticable, a pesar de los inmensos problemas desigualmente distribuidos. En el pasado, la gente hablaba de empleo, luego, de trabajo (autónomo, informal), posteriormente, de empresa individual o corre” y viração, en el argot brasileño. Con la liquidación de derechos y la licuefacción de las estructuras productivas y de servicios tradicionales, con cambios radicales en la división social del trabajo, con el declive del estado de bienestar (incluso en sus versiones débiles) y de las protecciones laborales (vía seguros, estabilidad o rentas mínimas), con la afirmación de la hegemonía neoliberal, la contracción fiscal de las políticas sociales, todo ello combinado con profundas transformaciones culturales en las relaciones de género, el surgimiento de un mundo gobernado por el matrimonio entre plataformas digitales (algorítmicas) e inteligencia artificial corresponde a una verdadera devastación social y psíquica.
El horizonte se dibuja a partir de la cuenta regresiva de la necesidad de participación humana en el transporte de personas y productos, el turismo y la vivienda, el comercio y la producción, llegando hasta la educación, la medicina, la cultura y el entretenimiento. En este sentido, si prevalece el sálvese quien pueda, el capital se alegrará de la disposición del trabajo y del triunfo sobre la resistencia, que tenderá a sufrir divisiones, fruto de la despolitización, y de los inevitables conflictos fratricidas. Si la dominación de clase ya estaba enmascarada por el fetichismo de la mercancía, incluso frente a la personificación extravagante de la burguesía en el período de acumulación primitiva, podemos imaginar lo sencillo que será hacer desaparecer el baronaje saqueador del campo de la percepción popular en la era de la digitalización universal. Los tiempos de identificación facial generalizada serían también tiempos de despersonalización radical de los nuevos amos.

Por lo tanto, puede que haya quedado obsoleto exigir regulación de las redes sociales y la actuación de las plataformas. Sabrán adaptarse. Las reglas no los detendrán. Tal vez la lucha que libran contra cualquier regulación sea falsa, un mero expediente para crear una cortina de humo que mantenga fuera de la agenda pública lo que realmente temen: la expropiación (hacer públicos) de sus mayores recursos de poder y riqueza, los algoritmos, operadores secretos y las bases de datos, su tesoro.

Por otra parte, sería regresivo, oscurantista y poco realista atacar a la inteligencia artificial, como un recurso tecnológico cuyos beneficios para la humanidad no deben subestimarse. En lugar de expropiar los medios de producción y subordinarlos a un estado dictatorial socialista, la contradicción en cuestión podría desencadenar un movimiento hacia la colectivización de algoritmos e información, cuya apropiación pública funcionaría como base de una democracia de masas, bajo la hegemonía de los trabajadores.

Para enfrentar a las bigtech, además de la disputa jurídico-política, no basta con difundir conciencia crítica. Es necesario invertir en la creación de redes y plataformas regionales, monitoreadas por los consejos populares. La inteligencia artificial y las plataformas al servicio de las cooperativas de trabajadores locales abrirían nuevas perspectivas positivas. Es fundamental que las experiencias piloto aporten ejemplos exitosos para que el proceso pueda expandirse.
Parte de la desorientación ─causada por la desestructuración del mundo del trabajo, por el agotamiento del repertorio convencional de profesiones y los profundos cambios culturales─ es la crisis de los proyectos individuales y colectivos, ya que el nuevo estado de cosas inhibe los cálculos prospectivos y convierte el futuro en una nebulosa incomprensible. La inundación de información a través de las redes sociales, y la perceptible complejidad del presente hacen que la vida cotidiana sea cada vez más indescifrable y los años venideros, inescrutables. Abandonado por los políticos (que hace tiempo que cambiaron la estrategia por la táctica y sobreviven al día, de elección en elección) y por los científicos sociales (que, por lucidez y prudencia ─y por tanto justificadamente─ evitan hacer predicciones), el futuro está colonizado por religiones, sin competencia, y ocupado por la fábrica de distopías en que se ha convertido la imaginación ficcional más ambiciosa.

A todo esto se suma el efecto desorientador que supone la adicción a las pantallas, desde la infancia. Saludemos la prodigiosa intuición de David Foster Wallace, que escribió en los años 1990 una novela extraordinaria y copiosa en torno a esta oscura previsión, Infinite gest. Ya no se trata de alienar, falsificar la realidad e inculcar una cosmovisión, sino de producir una economía neuronal refractaria a la sintaxis, entendida como secuencia lógica sin la cual ningún lenguaje puede subsistir, y mucho menos los diálogos o las reflexiones críticas, para lo cual son imprescindibles los argumentos, que, a su vez, exigen atención y concentración, paciencia y concentración estable: es necesario atenerse a los enunciados secuenciales y a sus derivaciones e inflexiones. El blanco de la guerra silenciosa que libran las plataformas, seduciendo a públicos siempre individualizados, es la Paideia afectivo-intelectual que nos dio mucho de lo mejor que heredamos del pasado, Paideia que se asocia a la ética de la conversación y del encuentro, de la coexistencia con el Otro (interno y externo), de la escucha y de la aventura de pensar e imaginar. Lo que se reprime, cuando el sujeto se vuelve pasivo, enganchado a la rápida secuencia de imágenes separadas, es el ejercicio de la libertad. Los flujos bioquímicos se conectan a las pantallas como sustancias adictivas y si bien no se trata de proselitismo en favor de una determinada cosmovisión, es claro que este proceso que altera la conciencia (y la forja, en cierto modo) refuerza inclinaciones y valores compatibles con la extrema derecha, en la medida en que privilegia la desconexión, la aprehensión de los hechos en detalle y por separado, y solo tolera lo que sobrepasa los limites de cada unidad (de tiempo y de narrativa) si las conexiones quedan en la superficie. Por lo tanto, los impactos retóricos y visuales se afirmarán con más fuerza que las exposiciones articuladas. La economía de la atención ha sido un tema frecuente, pero a veces se entiende como si el problema se redujera a la cautivación (capturar o no la atención). Es más grave, lo que está en juego es lo que llamamos “atención”. Si una fuente alternativa intenta atraer la atención del espectador de la pantalla ─de alguien que sostiene el smartphone como una extensión de su cuerpo─, si tiene éxito, no obtendrá el mismo tipo de atención que produce el compromiso adictivo con la pantalla. Será necesario generar otro tipo de relación, cuyos cimientos quizá ya estén erosionados por la experiencia dominante. La sensibilidad ─afectiva/intelectual─ y sus fuentes neuronales no son entidades pasivas convocadas por la pantalla del celular, que seguirán siendo las mismas y se movilizarán del mismo modo al ser convocadas por otro objeto de interés, humano o mecánico. La sensibilidad y sus fuentes se están remodelando en la interacción con las puntas de lanza de las plataformas, las aplicaciones y su materialización en los teléfonos inteligentes. En último término, el problema de la servidumbre voluntaria está en el horizonte, sustituyendo a la conversión, la fe y la persuasión. Evidentemente, aquí sólo estoy tocando la superficie del problema, que requiere un examen prolongado y profundo, y mucha investigación empírica multidisciplinaria.

He aquí una de las nuevas contradicciones contemporáneas: entre el entretenimiento digital algorítmico (que también es comunicación y tiene múltiples aplicaciones), mediado por las pantallas (que pronto serán, más directamente que hoy, extensiones corporales) y lo que una vez se llamó el espíritu humano. La preocupación moralista e hipócrita por las “drogas” –que ha legitimado tantas leyes y políticas públicas desastrosas– probablemente se volverá algo banal, si no ridículo, en breve.

Por último, es importante destacar que la visualización es mutua: vemos la pantalla mientras ella nos ve a nosotros, ya que las plataformas registran cada toque, cada vista, cada búsqueda y cuánto tiempo pasamos en cada imagen, lo que permite formar una constelación de preferencias y características personales, relevantes no sólo para el comercio, como se puede inferir sin mucho esfuerzo. No se deben subestimar los riesgos. Como Foucault percibió, el panóptico contemporáneo no nos ha convertido exactamente en una sociedad de vigilancia, sino de apropiación de los resultados de la vigilancia para todos los fines imaginables (y aún inimaginables). No somos una sociedad de recalque y represión, sino de confesión y, voilá, de la selfie. El término narcisismo ya no es apropiado para describir el grado de promiscuidad entre lo público y lo privado. De hecho, esta dualidad ha perdido su significado original: lo público no es el ágora virtual donde se encuentran sujetos diversos, sino la proyección fetichizada de la intimidad. Si en el neoliberalismo los individuos se engañan a sí mismos, asumiendo que son empresarios de sí mismos, en el universo digital creen que son proto-celebridades en gestación. Nada que ver con el proceso subversivo y liberador de individuación, descrito anteriormente.

Como se puede observar, la contradicción se opone a los futuros: las tendencias antagónicas chocan. Vale la pena reiterarlo una vez más: internet ha sido, predominantemente, la esfera del autoengaño y de la Santa Inquisición, ocupada por personajes cosméticos y radicalmente críticos; después de todo, esta es la lógica de los algoritmos, que promueven el compromiso acelerando los conflictos. Pero no debemos desestimar el potencial que ofrece para agregar dinámicas, ampliar la conciencia crítica y la participación ciudadana. Dependiendo de quién se apropie de las bases materiales y tecnológicas, de quién dirija la creación de algoritmos, del poder político-económico de las plataformas, de las bigtechs y de las organizaciones democráticas, se afirmarán rumbos opuestos.

 

Un choque entre vida y muerte.
La creación de sociedades postcapitalistas que combinen la primacía del interés colectivo o social (más allá de las fronteras nacionales), con la valorización de la libertad para las individualidades, en toda su radical diversidad.
El antropoceno confrontado conscientemente por un amplio proyecto político y por una coalición estratégica que adoptaría múltiples formas –una pluralidad que difícilmente podría ser subsumida por categorías ideológicas/políticas unívocas y excluyentes

Un choque de otro tipo, que en rigor no merecería ser llamado contradicción –al menos no en el sentido en que hasta ahora se ha utilizado aquí la categoría–, opone la vida y la muerte, sus impulsos, sus fuerzas y energías, sus aliados, sus regímenes de atracción y repulsión, sus irradiaciones y sus antagonismos. Vida es otra palabra mal definida, a menos que su referencia sea, por ejemplo, una especie o un individuo –incluso entonces persistirían las ambigüedades. En todo caso, este preámbulo prepara la mención a uno de los fundadores de la “modernidad”, Charles Darwin ─la naturaleza y sus poderes─, cuyo regreso al centro del escenario se ve matizado y enriquecido por la nueva experiencia del mundo que nos proporciona nuestro tiempo. Una experiencia que incluye nuevas tecnologías, nuevos conocimientos y el nuevo repertorio de posibilidades de vida colectiva, accesible a más personas gracias a la etnología, la arqueología y las artes del imaginario. No hay necesidad de rendirse a la lógica del mito para admitir que las fuerzas tectónicas chocan cuando el tenso equilibrio, el pilar de la estabilidad, se tambalea en tantos niveles que son fundamentales para la vida en el planeta ─no sólo la humana. El temblor que sentimos en el plano psíquico probablemente se comunica, a través de canales hoy aún insondables, con los choques sísmicos en curso, desde la biología hasta la política. Hay mucho que no sabemos, pero lo que sabemos es suficiente para reconocer la multidimensionalidad de la crisis.
La transición energética puede tal vez abrir la vía a la contradicción biosocial y poner en marcha la gran diáspora, separando los dos campos, el de la vida y el de la muerte, digámoslo así para simplificar: en ambos lados hay grupos sociales, prácticas, modos de ser, arreglos organizativos, tipos de producción, relaciones de poder, tecnologías, estrategias de supervivencia, saberes, valores y objetos. La transición del camino del colapso al camino de la vida implicaría no sólo cambiar las fuentes de energía, sino cambiar las finalidades para las cuales se utiliza la energía. La única manera de dar lugar a usos positivos de la energía implicaría, además de la preservación de las sociedades originarias, la creación de sociedades postcapitalistas que combinen la primacía del interés colectivo o social (más allá de las fronteras nacionales), con la valorización de la libertad para las individualidades, en toda su radical diversidad.
El antropoceno, cuya matriz fue la acumulación primitiva de capital y cuyo destino lo condenaba a ponerse a sí mismo en jaque –destruyendo sus propias condiciones de posibilidad–, se vería finalmente confrontado conscientemente por un amplio proyecto político y por una coalición estratégica que adoptaría múltiples formas –una pluralidad que difícilmente podría ser subsumida por categorías ideológicas/políticas unívocas y excluyentes.

En este contexto, gana más importancia el enfrentamiento entre los métodos de cultivo de la tierra, como la agrofloresta por un lado y por otro los monocultivos que el agronegocio implementa en latifundios depredadores (basados ​​en la expropiación violenta de pequeños productores campesinos –incluyendo comunidades ribereñas y quilombolas). Estos métodos son mucho más que formas productivas, son versiones contemporáneas del conflicto histórico entre las plantation coloniales y el campesinado. Son modos de producción, vinculados a proyectos sociales y políticos diferentes, hoy subsumidos bajo la hegemonía del capital. Se trata de matrices contrastantes de interacción con la naturaleza y el trabajo, que implican diferentes compromisos con la vida en sociedad y la muerte de las especies, el clima y la biodiversidad. El proyecto de poder del agronegocio es inseparable de un cierto tipo de integración subordinada de Brasil a las cadenas globales productivas y comerciales. El modelo arcaico de exportación de bienes primarios e importación de bienes manufacturados corresponde a la vía autoritaria de desarrollo del capitalismo brasileño, a nuestra modernización conservadora. Sin embargo, la diferencia entre la producción rural capitalista a gran escala y las iniciativas agroforestales innovadoras, orientadas a aumentar la productividad sin pesticidas y ambientalmente sustentables ─que involucran reforestación y otras técnicas ecológicamente saludables─ también impacta en la calidad de vida de la población, especialmente de las personas de bajos ingresos, cada vez más conscientes de lo que significa una alimentación saludable. No se trata sólo de un mercado más exigente y de un consumo selectivo. Sabemos cuán relevantes fueron los estudios, leídos con entusiasmo a partir de los años 1990, sobre las prácticas de consumo y la evolución de la ciudadanía. Sin embargo, en lugar del consumo, ya se están considerando, con un creciente sentido de urgencia, estrategias de autodefensa colectiva ante los graves riesgos, causados ​​ya sea por la contaminación de los alimentos, las consecuencias letales de la deforestación, la explosión de epidemias (eventualmente pandémicas) o el envenenamiento de las redes fluviales. No es necesario acrecentar las consecuencias de los desastres, principalmente ─pero no sólo─ para las clases trabajadoras, derivadas en parte de lo que ocurre en el campo: inundaciones, desbordes de ríos, incendios, desertificación, aumento del nivel del mar, olas de calor. Si la vida y la muerte no sirven como polos de una contradicción decisiva, ¿qué tal si los redenominamos como economía capitalista y supervivencia de la(s) especie(s)?
En cierta medida, el reconocimiento de la centralidad de esta contradicción recalifica el problema de la llamada transición energética. Esta transición políticamente acelerada implica ahora un nuevo tipo de lucha por la hegemonía moral, intelectual y afectiva, ─asociando aspectos de la mejor tradición de las luchas sociales con nuevas cuestiones y valores, y una nueva estética. El nuevo marco incluiría a tres de sus temas centrales como la crítica al patriarcado, el antirracismo y la multietnicidad en la construcción de una sociedad plurinacional. Se incluiría entonces la necesidad de otorgar liderazgo, más que protagonismo, a las mujeres, y a las mujeres negras, obviamente, ─y a la representación de las sociedades originarias. Adoptando aquí el vocabulario de los movimientos feministas, la ética del cuidado debería prevalecer sobre la ética del poder ─y su corolario económico. El socialismo ambiental feminista antirracista y multiétnico, movilizando discursos, afectos y todo un imaginario refractario a las tradiciones autoritarias, constituye, en mi opinión, la única perspectiva capaz de redefinir la disputa en torno a la transición energética, entendida como el punto neurálgico del conflicto contemporáneo, en la medida en que incluya la constelación de temas pertinentes al cambio estructural de las sociedades.

No parece razonable suponer, considerando la historia que nos ha traído hasta aquí, que el autoritarismo pueda superarse en un entorno patriarcal y que la explotación del trabajo humano pueda terminar en un entorno capitalista, y que valores como la equidad y la libertad puedan ser válidos en un entorno racista. Y sabemos con certeza que la vida no es posible en un ambiente degradado por las nuevas condiciones climáticas. La bandera que hay que defender tendrá que ser constelada, multicolor y aplicada en todas las pequeñas y grandes luchas, en todos los frentes, con todas las voces. No habrá un camino único y seguro, ni certeza de victoria, palabra que, por cierto, no tiene sentido, pues las luchas que prolonguen sus condiciones de posibilidad serán victoriosas, y a su triunfo llamaremos esperanza. La mayor referencia para la filosofía política del futuro es quizás un personaje femenino ficticio de origen popular persa, árabe e indio: Scherazade.║

 


[4] Luiz Eduardo Soares es brasileño, pensador, actor político, académico, antropólogo, sociólogo, cientista político, escritor literario, ex Secretario Nacional de Seguridad Pública (en el 2003, primer gobierno de Lula), ex Coordinador de Justicia, Seguridad y Ciudadanía de Río de Janeiro (1999-2000). Para conocer sus posturas, publicaciones y obras vean la página www.luizeduardosoares.com.

[5] Scherazade es el personaje y la narradora principal de la recopilación de cuentos en farsi titulada Las mil y una noches. La historia por capítulos cuenta que el sultán Shahriar (en persa: ? «rey») desposaba una virgen cada día y la mandaba decapitar al día siguiente. Todo esto lo hacía en venganza, pues encontró a su primera esposa engañándolo. Ya había mandado matar a tres mil mujeres cuando conoció a Scheherezade. Hija del gran visir de Shahriar, Scherazade se ofrece al rey en contra de la voluntad de su padre, con el fin de aplacar su ira. Una vez en las cámaras reales, Scherazade le pide al sultán dar un último adiós a su amada hermana, Dunyazad. Al acceder a su petición y encontrar a su hermana, ésta le pide un cuento, como secretamente había planeado Scherazade, y, así, la esposa del sultán inicia una narración que dura toda la noche. Scherazade mantiene así al rey despierto, escuchando con asombro e interés la primera historia, de modo que pide que prosiga el relato, y Scherazade aduce la llegada del alba para postergar la continuación hasta la noche siguiente. Shahriar la mantiene con vida ante la perspectiva de la narración por venir. El mismo acontecimiento se repite durante una y otra noche, encadenando los relatos uno tras otro y dentro de otro, hasta que, después de mil y una noches de diversas aventuras, y ya con tres hijos, no solo el rey había sido entretenido sino también educado sabiamente en moralidad y amabilidad por Scherazade, quien de concubina pasa a ser esposa del rey de pleno derecho. El núcleo de estas historias está formado por un antiguo libro persa llamado Hezar-afsana o los Mil mitos (en persa: ). Fuente: Wikipedia, Scherazade.

[6] Los siguientes tres párrafos resumen, con cambios menores, extractos de Soares, Luiz Eduardo. O Brasil e seu duplo (São Paulo: Todavia, 2019). La traducción del libro, de Rodrigo Álvarez, fue publicada por la editorial argentina Prometeo Libros, en 2021, con el título Brasil y su doble; patriarcalismo capitalista, revolución estética y utopía libertaria.

 

Palabras clave:

Luiz Eduardo Soares
Distopia
Esquerda
Izquierda

 

www.librevista.com
nº 63, mayo 2025